Viajar até França é garantia de agradáveis descobertas, já se sabe. Mesmo assim, há lugares que ainda conseguem surpreender, como é o caso de Estrasburgo. Sétima maior cidade francesa, conhecida sobretudo pelo seu património UNESCO e por acolher instituições como o Parlamento Europeu, ganharia certamente o prémio de Miss Simpatia num qualquer concurso, tal é a amabilidade e bom humor com que acolhe os visitantes. Por estes dias está ainda mais bonita: decorre a 444ª edição do seu Mercado de Natal, o mais antigo do país.
Texto: Teresa Frederico Fotos: Alexandra Sumares
Não há como perder o norte, ou qualquer outro ponto cardeal, em Estrasburgo. De qualquer lado se consegue vislumbrar a torre da imponente Catedral de Notre-Dame e, portanto, encontrar o caminho para o centro do centro histórico. Obra-prima da arte gótica, foi edificada sobre uma antecessora do século XI, destruída por um incêndio, da qual resta a cripta e pouco mais. Impressiona hoje, como antes impressionou Victor Hugo, que a terá descrito como “Prodige du gigantesque et du délicat“, ou prodígio do gigantesco e do delicado. E impossível não concordar com o escritor.
Com 142 metros, o mais alto edifício de toda a cristandade até ao século XIX espanta pela sua elegância mas também pela riqueza da fachada, ornamentada com centenas de expressivas esculturas. No interior, onde continuam a celebrar-se missas e casamentos, destacam-se vitrais do século XII ao XIV e um órgão monumental mas as atenções acabam por centrar-se no relógio astronómico renascentista. Dotado de um mecanismo de 1842, apresenta diariamente, pelas 12h30, um verdadeiro espectáculo: figuras representando as várias etapas da vida (uma criança, um adolescente, um adulto e um velho) passam em frente à Morte e, mais acima, os apóstolos desfilam perante Jesus, numa interessante obra que requereu a colaboração de escultores, pintores, matemáticos e relojoeiros suíços.
Também interessante é o púlpito da autoria do escultor Hans Hammer, hoje sem uso mas que atrai muitos dos visitantes. Param junto dele e tocam na escultura de um pequeno cão deitado – como que à espera que o dono, Geiler de Kaysersberg, pregador do século XV, termine o sermão – para obter a graça pedida ou, simplesmente, porque dá sorte. Está lustroso, tal é o número de “festas” que recebe e lembra que, no passado, os animais podiam entrar nas igrejas. Hoje, em França, os cães acompanham os donos aos restaurantes, pernoitam em hotéis e entram em lojas, ao contrário do que, incompreensivelmente, acontece por cá.
A visita à Catedral encerra mais um atractivo, haja pernas para isso já que implica subir 332 degraus: a ampla vista desfrutável lá do topo, abrangendo até a cadeia montanhosa dos Voges e a Floresta Negra alemã.
Da histórica Petite France…
Cá em baixo, a animação da praça prolonga-se até ao anoitecer. Chegam e partem continuamente grupos de jovens, aparentemente em visitas de estudo, e de idosos em férias, mais casais a passeio com as respectivas crianças e vários fotógrafos amadores, encantados com tantos pormenores e recantos registáveis para a posteridade.
Daqui espalham-se pela Grande Île, ilha envolvida pelos dois braços do rio Ill e ligada ao “continente” por nada menos de 21 pontes e passadiços, declarada Património da UNESCO em 1988 por se tratar de uma área muito representativa das funções de uma cidade medieval e da evolução de Estrasburgo do século XV ao XVIII.
Além da catedral, integram este importante conjunto patrimonial igrejas medievais, como Saint-Thomas, a segunda maior da cidade, onde têm lugar concertos comemorativos da morte de Johann Sebastian Bach; Saint-Pierre-le-Jeune, protestante, que preserva colunas do século XI e frescos do XIV; e ainda Saint-Pierre-le-Vieux, com a particularidade de possuir dois edifícios, um dedicado ao culto católico e outro ao culto protestante.
Inclui, também, o Palais Rohan, palácio do século XVIII projectado por Robert de Cotte, um dos arquitectos de Versalhes, que foi residência de príncipes-bispos e hoje alberga três museus: o de Artes Decorativas, onde é possível apreciar os sumptuosos alojamentos dos religiosos e peças de porcelana, ourivesaria, mobiliário, pintura e escultura do século XVII ao XIX; o de Belas Artes, com obras de Botticelli, Rafael, El Greco, Rubens, Goya e Delacroix, entre outros artistas de renome mundial; e, finalmente, o Arqueológico, um dos maiores de França, que traça a História da Alsácia desde 600.000 a.C. a 800 d.C.
Um passeio tranquilo pelo centro da cidade revela mais edifícios incontornáveis como a Maison Kammerzell, moradia de várias gerações de comerciantes ricos. Outros são bem menos espampanantes mas continuam a manter um imenso charme, preservando a “colombage”, ou enxaimel, técnica de construção que associa vigas de madeira e alvenaria.
Dessas casas, que remontam aos séculos XVI e XVII, resulta grande parte do encanto da Petite France, o bairro mais típico do centro histórico, outrora ocupado por pescadores, moleiros e curtidores de peles. O colorido das flores nas janelas contrasta com a cor das árvores e arbustos debruçados sobre os canais, nativos e turistas fazem uma pausa nas pontes, esplanadas ou até no chão, sentados à beira da água, para apreciar a belíssima paisagem e ver os barcos passar. Oásis no coração da cidade é frase mais que feita mas aqui traduz exactamente a atmosfera, não há volta a dar.
Mais um ponto de eleição para observar os ditos canais é a Represa Vauban, obra de 1690 assinada por Jacques Tarade, director de fortificações da Alsácia, segundo projecto do engenheiro militar Vauban, que permitia aumentar o nível da água na zona sul em caso de necessidade. No topo, o terraço constitui um miradouro privilegiado.
Fica a pouca distância das chamadas Pontes Cobertas que, de facto, não o são, pois perderam a cobertura no século XVIII. Mantêm-se as torres do século XIV, vestígios de vetustas muralhas.
… ao moderno Bairro Europeu
Situada a apenas uma dezena de quilómetros da Alemanha, que fica logo do outro lado do rio Reno, Estrasburgo tem uma História conturbada que a tornou alemã ou francesa ao longo dos tempos. Como consequência indirecta da Guerra dos 30 Anos, em 1681 foi anexada à França de Luís XIV. Em 1871 integra o território imperial (Reichsland) da Alsácia-Lorena e assim permanece até ter sido libertada, corria o ano de 1918, pelas tropas francesas. Em 1940 volta a pertencer novamente à Alemanha, quatro anos depois “regressa” a França.
Tal passado, bem como a localização geográfica, explicam muita coisa. O dialecto, por exemplo, que parece alemão mas não é, explicam com veemência os autóctones. É alsaciano, de origem germânica mas com especificidades muito próprias, ao ponto de um nativo de Frankfurt não o compreender bem. Varia, inclusivamente, dentro da própria região da Alsácia.
Antes apenas falado por idosos, está a ser retomado, seja nas escolas seja nas artes, com artistas que só cantam em alsaciano e eventos culturais que o homenageiam. É por isso, também, que muitas das ruas do centro da cidade surgem com duas designações, em francês e em dialecto, uma iniciativa camarária com pouco mais de uma trintena de anos.
Da História da cidade também fazem parte muitos nomes que ficariam famosos. Gutenberg terá aqui criado, em 1450, o processo de impressão com caracteres móveis e, por isso, foi considerado o pai da imprensa (e tem direito a uma estátua na praça com o seu nome). Em 1792, um oficial do exército compôs em Estrasburgo o Chant Militaire pour l’Armée du Rhin que viria a tornar-se na Marseillaise, o hino de França. O escritor alemão Goethe viveu na cidade cerca um ano, onde prosseguiu os seus estudos de Direito. Mozart realizou aqui uma série de concertos. De visita, com muita pompa e circunstância, estiveram também Luís XV e Maria Antonieta.
O século XX manteve Estrasburgo no centro da História europeia: em 1949 foi escolhida como sede do Conselho da Europa, onde estão representados 47 países; em 1995 foi inaugurado o Palácio dos Direitos do Homem, onde funciona o Tribunal Europeu; em 1999 passou acolher o Parlamento Europeu, belíssimo edifício com uma imensa fachada de vidro reflectido o céu e o rio no qual têm lugar as reuniões mensais da instituição.
Estas instituições só são visitáveis em grupo, pelo que o turista individual fica limitado a observar o exterior dos edifícios. Uma das boas alternativas para o fazer é optar por um passeio de barco, que percorre desde o centro histórico ao Bairro Europeu. A bicicleta é outro meio de transporte a considerar, já que Estrasburgo conta com 500 quilómetros de pistas destinadas à circulação de velocípedes, a maior extensão em França.
Delícias gastronómicas e não só
Caminhar por entre ruas e ruelas, com paragens à beira-rio é mais uma excelente opção, que a cidade presta-se a isso. E assim se descobrem lugares fantásticos, com pessoas sempre dispostas a dar dois dedos de conversas que incluem, inevitavelmente, muitos sorrisos.
Um desses lugares é o atelier/loja de Martine Missemer, pintora, escultora, ilustradora e artesã cuja maioria das obras, muitas vezes protagonizadas por animais, é cheia de humor. Outro é a Pain d’Épices, ou pão de especiarias, doces típicos do Natal mas que, hoje em dia, são consumidos durante todo o ano. Inspirando-se nas suas viagens, Mireille Oster, a simpatiquíssima proprietária, enriqueceu as receitas com ingredientes orientais e norte-africanos, entre outros, e o resultado faz sempre crescer água na boca. Há até biscoitos com declarações de amor, deliciosos presentes para momentos especiais.
Mais um lugar de visita obrigatória é a Cave Historique des Hospices de Strasbourg, com mais de seis séculos de existência. Parece estranho, uma cave de vinhos num hospital, mas não é tanto assim: em tempos os cuidados médicos eram pagos em géneros, pelo que o hospital passou a servir de armazém, acabando por se transformar, ao longo dos anos, numa montra dos vinhos da região, representativa da vizinha e conhecida Rota dos Vinhos da Alsácia, com 180 quilómetros. Por outro lado, a bebida era distribuída aos doentes. No início do século XIX, por exemplo, considerava-se que dava saúde, pelo que chegava a substituir a medicação… O mais velho vinho do mundo em tonel, datado de 1472, é a estrela da cave mas há mais para ver – e muitas garrafas para comprar, na loja, o que se traduz numa boa acção pois contribui para a aquisição de equipamento médico. Participando numa visita de grupo a diversão é garantida graças ao bom humor do responsável, Philipe Junger, finalizada com a prova de um crémant, designação do champanhe fora da região que lhe dá nome.
Acompanhadas por um Riesling ou um Pinot Noir da zona, as refeições em Estrasburgo destacam-se pela generosidade das doses. Diz-se, aliás, que combinam a abundância alemã com o requinte francês. Não faltam foie gras, aqui inventado por volta de 1780, e chucrute, prato com enchidos, bacon e repolho, mas também vale a pena provar a tarte flambée, uma espécie de pizza de massa fina com toucinho, natas e cebola, e spaetzle, massa fresca usada como acompanhamento. E os doces – todos!
Um Natal muito especial
Estrasburgo é também a Capital do Natal francês. O seu mercado natalício – ou Christkindelmärik, em alsaciano – é o mais antigo do país: este ano celebra-se nada menos que a 444ª edição.
Desde 1870 instalado na Praça Broglie, ao longo dos tempos estendeu-se a outros lugares, como as praças da Gare e da Catedral e a vários quarteirões da cidade, que ganham uma nova vida neste período, inclusivamente com a realização de exposições e concertos. O ambiente torna-se mágico, sobretudo ao anoitecer, quando vitrinas e fachadas se iluminam.
Na Praça Kléber, uma enorme árvore de Natal é o centro das atenções. Reza a História que outrora foi ornamentada com açúcar, rosas de várias cores e batatas, e que estas últimas estarão na origem das bolas decorativas tal como as conhecemos. Bancas espalhadas pelos diversos espaços continuam a vender os produtos de sempre, de árvores a decorações natalícias, de peças de artesanato local a doçaria, nomeadamente bredle, bolachinhas estaladiças típicas. De caminho, não faltam ocasiões para provar iguarias da época acompanhadas por um copo de vinho quente. As crianças, claro, não são esquecidas, sendo-lhes reservada uma área na Praça St. Thomas, com actividades lúdicas e espectáculos infantis.
A celebração permite até descobrir outras formas de viver o Natal através da participação de um país convidado. Este ano a honra cabe à Croácia, membro da União Europeia desde Julho último, que apresentará, na Praça Gutemberg, as suas especialidades gastronómicas e o seu artesanato, num programa que integra também concertos, espectáculos de dança e animação para os mais novos.