As mãos em prece acompanham o tronco que se dobra numa ligeira vénia; em seguida os cantos da boca arqueiam-se num sorriso cordial, ouvindo-se prenunciar o célebre Namasté! Bem-vindo ao Rajastão, a província que é a face artística da Índia e a sua região mais visitada.
O nome do território advém das tribos rajput que aí se fixaram, estabelecendo pequenos reinos de guerreiros descendentes do Sol e da Lua. Oficialmente, a epopeia dos marajás – nome porque são conhecidos – concluiu-se com a proclamação da independência do país mas estas personagens não são difíceis de encontrar, identificadas pelos turbantes coloridos e pelos longos bigodes de pontas reviradas para cima. Habitam alas de palácios que outrora os seus antepassados mandaram construir, tendo adaptado parte dos edifícios para hotéis, cujo luxo requintado, fez com que fossem os eleitos para esta estadia indiana.
Texto e Fotos: Maria João Castro
Um místico coloca-me um tilak na testa, em sinal de bênção para a viagem que percorrerá as principais cidades do Rajastão, vivenciando lugares como Mandawa, Bikaner, Jaisalmer, Jodphur, Jaipur e Agra, num percurso tão intenso quanto inolvidável.
A primeira paragem acontece em Mandawa junto a uma velha haveli, uma casa senhorial repleta de frescos do século XVII e XVIII. O som de uma tabla desprende-se da rua ritmando as horas, enquanto no telhado, um pavão empoleirado abre a sua cauda majestosa. Ao fundo, o pôr-do-sol doura a fachada, afundando os relevos em sombras e imprimindo grandeza ao tempo e ao esquecimento. Nesta primeira etapa, o repouso é feito no castelo de Mandawa, complexo convertido num belíssimo hotel que oferece o seu jardim iluminado de tochas e estrelas para a última refeição do dia. Bolas de fogo iluminam os vultos das bailarinas que dançam ao mesmo tempo que o jantar inunda a atmosfera com um aroma a caril. Já a noite vai alta quando abro a porta da alcova, de generosas proporções. As arcadas que contornam a divisão encontram-se forradas de coxins que emolduram as janelas. Ao centro, uma cama de madeira escura e maciça jaz convidativa e, ao fundo, uma cadeira de baloiço, suspensa do tecto, convida a embalar o sono. Cúmplice e distante, um harmónium indiano mantém por instantes o balancé do assento, adormecendo-o.
O novo dia encaminha-nos para Bikaner e para o Laxmi Niwas Palace. Sou recebida com um colar de flores perfumadas e uma chave gigante. Após ladear pátios e alpendres subo para um terraço empoleirado sobre a paisagem: o Sol forte queima o horizonte enquanto o bagageiro se detém ao fundo da açoteia, frente a uma divisão quadrada. A porta colossal abre-se, mostrando uma assoalhada onde sobressai uma elegante loggia que emoldura uma janela rendilhada de pedra esculpida que se abre para a perspetiva exterior. A arquitetura é, no mínimo, sublime! Desço para o átrio, lugar de um brunch regado a canela e açafrão, e onde um cacho de glicínias perfumadas emoldura duas anciãs que tocam alaúde. A visita da tarde leva-nos ao Forte Junagarh de Bikaner, construído no século XVI. No seu interior subsistem mais de trinta palácios e templos, erguidos ao longo de sucessivos reinados. As zenanas – os aposentos femininos que se abrem para pátios íntimos – encerraram verdadeiros haréns onde, nas horas de calor, as cortesãs desciam os finos reposteiros de bambu sobre as janelas, sussurrando alquímicos pudores palacianos. As divisões, que davam para as partes públicas do palácio, possuíam janelas de pedra rendilhada – denominadas jalis – que filtravam os rostos das deusas do serralho, deixando-as ver sem serem vistas, num mundo recentemente perdido mas já esquecido. Tudo remete para um passado glorioso, onde os móveis pesados, de madeira recortada, brilhavam por entre as taças inundadas de água, polvilhadas de pétalas de rosa que aromatizavam o espaço. Reminiscências de uma vida de volúpia, agora tão distante quanto fugaz.
A página muda no calendário e o novo destino acompanha-a. Jaisalmer, a Cidade Dourada, soberana e solitária, jóia de filigrana dourada, descrita pelos antigos viajantes como uma obra de anjos, fadas e demónios, emerge no horizonte como uma quimera reluzente. Do altaneiro terraço do Narayan Niwas Palace, a vista abre-se sobre o forte da cidade-presépio, vendo-se o contorno do cenotáfio dos soberanos Maharawals, aureolados de uma beleza silenciosa. O almoço – umas koftas divinamente temperadas a especiarias – é saboreado ao som da suave melodia de ragas e sob o zunir do vento que levanta remoinhos de terra, diluindo-os em formas diáfanas.
A nova etapa leva-nos a Jodhpur e ao Umaid Bhawan Palace, onde somos recebidos por uma fileira de guardas de fartos bigodes brancos que se imobilizam na rigidez da sua pose militar. A manhã é preenchido com um passeio pela Cidade Azul, o cognome porque Jodhpur é conhecida. Ao longe ergue-se o Forte Mehrangarh, empoleirado no alto de um promontório que marca o limite do grande deserto indiano e num plano mais próximo vê-se um par de mulheres a varrer o chão, usando um adorno de prata ao longo da risca do cabelo que finaliza numa lágrima que cai sobre a testa, enquanto não muito distante, um religioso treina a mente, meditando.
Segue-se Udaipur, a cidade duplicada na água, à beira do lago Pichola no meio do qual ressalta o imponente Lake Palace Hotel, suspenso, como uma miragem. Em terra evidenciar-se o Palácio da Cidade, o maior complexo palaciano do Rajastão. Num canto, sentado de pernas cruzadas, um indiano dedilha uma cítara: ela responde soltando uma lamúria de amor que submerge o pátio num remanso nostálgico. Ao fundo, as colinas traçam uma linha contra o céu estrelado que faz dançar a noite.
Um voo rápido deixamos em Jaipur, a Cidade Rosa e a capital do Rajastão. Contemplamos o seu Palácio dos Ventos, uma fachada reservada ao séquito feminino onde, a partir de uma das suas 953 janelas octogonais recortadas, as damas observavam, ocultas, o fervilhar de vida na rua principal. Há ainda tempo para deambular pelo Jantar Mantar, o maior observatório astronómico da Índia. Tomamos um riquexó, depois um tuc-tuc e por fim subimos no dorso de um elefante de tromba pintada em direcção ao Forte de Amber. Descemos ao crepúsculo para partir de novo. Pela janela vão passando ursos, macacos, esquilos, camelos e vacas. No lusco-fusco, as silhuetas escondem-se por entre um céu que abraça a Lua, para depois reaparecerem como uma ilusão fantasmagórica.
La cérise sur le gâteau do onírico Rajastão aproxima-se. Desviamos para um caminho estreito e murado e pouco depois o veículo imobiliza-se. A curta vereda acaba num portão sobrepujado por um arco vermelho. De repente, quando se trespassa o umbral, o ar rareia, electrizando-se. Ei-lo, grandioso e magnífico, o Taj Mahal. Construído entre 1631 e 1648, o mausoléu é uma ode ao amor do Xá Shan Jahan à sua esposa favorita, Mumtaz Mahal. De mármore níveo, possui uma arquitetura geométrica e depurada, sustentada por paredes cravejadas de pedras preciosas que se destacam sob o pôr-do-sol que o incendeia. É então que o branco do edifício se torna rosáceo, na precisa hora em que os pássaros gorjeiam em enorme algazarra, regressando aos ninhos. Saio do recinto e volto-me para trás. Ele está ali e ali permanece, eterno na impermanência da vida. Quem afirma conhecê-lo de fotografias ou gravuras está redondamente enganado; o Taj só se apreende face a face. A obra-prima icónica cristaliza todas as histórias de amor, lágrima na face da eternidade.
O caleidoscópio vivo e sedutor das horas esgota-se sem clemências. Adormeço sob a humidade da monção, apagando com os sonhos o tilak da jornada rajput… Ocorre-me então que percorrer esta região da Índia é uma história de amor, colorida e sublime, que permanece na memória como motor da sua própria ficção.