As pontas dos dedos percorrem o litoral do Kerala. Linhas, letras, pontos, lugares, centenas de quilómetros resumidos em centímetros de papel. O mapa está estendido sobre o assento da frente, numa carruagem de segunda classe. Viajamos num domingo de manhã, entre Kannur, a antiga Cananor das crónicas portuguesas, e Kozhikode, a Calecute do primeiro contacto entre o Gama e a Índia das cobiçadas especiarias.
Texto e Fotos: Humberto Lopes
A jornada começou horas antes ainda no Karnataka e perdeu-se a conta das vezes em que Rajiv, companheiro de viagem desde Mangalore Junction, comentava a proximidade de um cenário pitoresco. Rajiv é estudante de medicina, mas gasta os olhos também em literatura. Tira da mochila um livro que anda a ler: Blindness (Ensaio Sobre a Cegueira). É o segundo livro de Saramago que lê. Ou outro foi Baltazar and Blimunda (Memorial do Convento). Rajiv lê uma passagem em voz alta. O ruído do comboio sobre as travessas da linha abafa o som da chuva. Do outro lado da janela, as extensas águas do Rio Valapattanam brilham à luz opaca da monção.
São sobretudo os dedos de Rajiv que correm o litoral de papel, para cima e para baixo. Já passamos Kannur e ficou para trás um forte português refeito pelos holandeses. Rios, as manchas azuis dos largos estuários onde se adivinha a sucessão de arcos de pontes, as linhas amarelas do bordado infinito das estradas secundárias, manchas verdes de parques e reservas naturais, enquanto lá fora, através das janelas, passam palmares e casinhotos alvos na sua sombra, campos agrícolas, camponeses de pele curtida pelo sol e vestidos simplesmente com um dhoti branco, canais, bocas de água que parecem as saídas das Backwaters para o Mar Arábico, bandos de aves brancas, arrozais de um verde claro e ondulante, um céu azulíssimo livre de nuvens, casas brancas dormitando ao sol, os picos dos Ghats Ocidentais adivinhados imóveis e indiferentes ao longe. A longa cordilheira, que tem uma decisiva influência na formação das monções indianas, agrega uma série de parques e reservas naturais, a grande maioria no estado do Kerala, com classificação de património da UNESCO. A riqueza da flora e da fauna justificam-no, mas o viajante que anda por estas terras tem ali refúgio e refrigério para as calinas do clima indiano. Não era ali, afinal, e sobretudo em Munnar, que os colonos britânicos do Raj imaginaram as suas refrescantes highlands, as suas hill stations de férias, rodeadas de plantações de chá?
A longa serpente do Malabar Express passa em sentido contrário, a caminho de Mumbai. Ao cruzarmo-nos, sobrevém um sobressalto, um abanão, o sopro de uma massa de ar incomodada. Uma família de ratinhos em pânico desliza pelo chão, rente aos pés; surgem das entranhas de um banco e desaparecem debaixo de outro. Invejo-os: ratos viajantes, sem pátria, sem fazerem ideia da estação de destino, atravessam todos os dias vários Estados indianos, milhares de quilómetros por dia, milhões durante as suas vidas de roedores andantes.
Calecute, o grande circo da Bazaar Road
Primeira paragem nesta jornada até Kanyakumari, o cabo Comorin, ponta do sub-continente bem esticada até quase tocar o Sri Lanka, já para lá de Thiruvananthapuram – Trivandrum para os amigos, a capital do Kerala. Vamos pôr os pés em Calecute, uma pequena mancha no mapa, cortada pela linha azul do rio Chaliyar.
Um pouco atrás: desde o Índico às Molucas e às ilhas de Banda, muito começou a mudar a partir do século XVI. Uma outra ordem económica mundial, dizem os historiadores, começou a tomar forma. Foi muito celebrada do lado de cá, nas longitudes europeias. Não tanto do outro lado, ainda que tenha tido as suas sérias consequências por lá, como escreveu K. M. Panikkar, historiador indiano, a propósito da chegada intempestiva dos portugueses. Já havia comércio, mas a chegada súbita dos estrangeiros com as suas naus ditou, à força, novos patrões e uma espécie de anexação, coisa que nem ao almirante chinês Zheng He, que ali tinha estado antes do Gama, havia passado pela cabeça. Calecute era há muito o maior entreposto comercial da região – e por isso alvo da cobiça portuguesa – e Ibn Battuta e Marco Pólo atestaram-no a seu tempo. A origem de todo esse comércio remonta a tempos anteriores ao samorim (persas, chineses e árabes sempre ali aportaram), a tempos anteriores até à existência de Portugal como país – já nessas antiguidades longínquas, desde o século VII, por ali se comerciava. Ibn Battuta descreve no século XIV o porto da “Cidade das “Especiarias” como “ponto de encontro de mercadores de todo o mundo”.
Esta Kozhikode em que se transformou a antiga Calecute continua a ser um paradigma do reinado do comércio no litoral do Malabar. À parte umas poucas visitas redundantes e triviais, o viajante cedo se apercebe de que o coração da cidade continua a palpitar onde mais o comércio se exercita. Está aí a soma e a sina de gerações e gerações. Sigamos aquela grande Big Bazaar Road, cheia de armazéns, lojas, comerciantes e mercadoria para toda a procura. A Big Bazaar Road é, na S. M. Street e noutras passagens, o melhor espelho dessa veia de Kozhikode. É uma rua extensa, palco de um comércio de colossais proporções, que vai das imediações da estação ferroviária em direcção ao litoral, até perto da bela e famosa mesquita que Vasco da Gama mandou incendiar e que foi depois restaurada, a esmeraldina mesquita Mithqal, no bairro de Kuttichira. Assim a vemos agora, com um painel diante da entrada a contar a história, não esquecida a cinza em que o contrariado capitão Gama a mandou reduzir como sinal de que rezas e heroísmos passavam então a ter outros narradores e outras narrativas.
É a secção mais próxima do litoral, essa que recebe o nome de Big Bazaar Road: um universo infinito de armazéns e lojas onde diferentes e insuspeitas variedades de arroz, lentilhas, especiarias, etc. são expostas pelos comerciantes em inúmeras pequenas vasilhas de amostra. Cá fora, de centenas de camiões são descarregados milhares de sacos de tudo e mais alguma coisa. Os negócios, pelo menos alguns, são familiares e passam de geração para geração. Alguns têm nomes familiares em tabuletas: Xavier Trade, Sousa Trade, Jose Trade.
Backwaters, as águas do interior
O barco avança devagar ao longo de um largo canal. Nas margens há uma infinidade de coqueiros, muita sombra, pequenas canoas encostadas em precários cais improvisados à beira de casebres. Ouve-se o restolhar ritmado do remo na água, um grasnar de corvos ao longe, chilreares de passarada miúda saindo dos coqueirais.
Tivemos sorte com esta shikara, uma barcaça ainda meio tradicional, feita de madeira, tela de bambu e fibras de palmeira, a lembrar na cobertura os kettuvallam, os barcos-casa que cirandam pelas Backwaters do Kerala com turistas mais possidentes. Vamos devagarinho, não há pressa. Dizia Theroux, talvez a propósito das suas jornadas de comboio: a pressa é inimiga do viajante, o viajante que se preza nunca tem pressa. O filósofo Paul Virilio foi preciso aliás, quanto aos malefícios da velocidade. A velocidade oblitera as etapas, mata os lugares. O avião é o grande assassino das distâncias, o assassino impune da viagem, conclui desolado o viajante, embalado com o ritmo dos remos nas águas. Pensarão nisso os três ou quatro turistas alvoroçados em algazarras de selfies lá atrás, na popa do barco? Cansaram-se depressa, voltaram aos seus lugares e adormeceram.
As Backwaters são uma rede natural de canais e ilhas que inclui mais de três dezenas de rios e se estende por centenas de quilómetros no interior, paralela ao litoral do Kerala. Partimos de Alapphuza num barco guiado por um barqueiro circunspecto, reservado, o senhor Kabir.
Cochim, redes chinesas e memórias do império
Para o leitor português, Kerala e Cochim evocam as primeiras incursões seiscentistas portuguesas na costa do Malabar. Mas esse trecho histórico foi realmente um quase nada na história da Índia, uma intrincada epopeia que remonta muitos séculos atrás até aos escritos dos Vedas e quando o sânscrito era uma língua de todos os dias. Os historiadores indianos preferem, num registo de pós-colonialidade, sublinhar reversos de heroísmos lusitanamente oficiais: para uma vasta plêiade de autores, como K. M. Panikkar, o Gama foi um comprovado corsário cruel e a história daqueles lugares não pode contornar as barbaridades da pirataria lusitana e os massacres que afundavam navios de peregrinos que iam para Meca. Fernão Mendes Pinto tocou no assunto: A Peregrinação conta essas histórias que Camões silenciou nos seus versos patrióticos.
O Mar Arábico vem até ali juntar-se às Backwaters, num canal onde se acha um dos símbolos mais evocados e fotografados de Fort Kochi (ou Cochim), as famosíssimas redes chinesas. Não será o sítio, fotogenias à parte, o melhor ponto de partida, o melhor, o mais à mão, o mais natural para deambular pela cidade?
Pertinências históricas, urbanas, identitárias, culturais: há quanto tempo estão ali as redes, ora no sereno contraluz dos crepúsculos, recorrente bilhete postal de Cochim, ora em cinzentas, impressionistas telas descoloridas e fustigadas pelas chuvas da monção? Há pelo menos uns seiscentos anos, quando navios chineses já por ali vinham navegando e comerciando. O famoso navegador e almirante chinês Zheng He, que terminou os seus dias em Kozhikode, foi desse tempo, o tempo em que, consta, terá até dobrado o dito Cabo da Boa Esperança quase cem anos antes do Gama, no início do seculo XV – o facto abre caminho a muitas lições por vir e os portugueses, oficiais ou não, só agora, nesta franca era de pós-colonialidade, começam a perceber que a História tem muito mais versões que supõem vãs filosofias nacionalistas.
O ferry para a ilha Vypin está ali ao lado; na outra margem espreita a bela igreja portuguesa de Nossa Senhora da Esperança. Do lado de cá, restos do império em forma de fortaleza arruinada, a primeira edificada pelos portugueses na Ásia, a Igreja de S. Francisco, o túmulo vazio do capitão Gama (o defunto foi depois transferido para a respectiva pátria), um soturno museu de memórias dos tempos da feitoria portuguesa habitado também por insaciáveis mosquitos.
Pela Bellar Road vai-se entre casarões, alguns com vagos resquícios de arquitectura lusitana, muita agitação comercial, trânsito de riquexós e cabritos, até Mattancherry, um bairro de muitas lojas de especiarias e também da sinagoga onde Salman Rushdie situou cenas de O Último Suspiro do Mouro. Moraes Zogoiby, o personagem narrador, de uma família com sangue do Gama, é, aliás, natural de Mattancherry.
Fosse Cochim esse muito e já seria tanto ou quase tudo para o viajante. Mas Cochim é também a pátria da famosíssima tradição teatral Kathakali, uma prodigiosa arte que mescla música, dança, canto, mímica, teatro e narrativas sobre querelas de deuses extraídas do Mahabharata. Um folheto esclarecedor sobre a trama é distribuído à entrada das sessões. Depois, no início, assistimos durante uma boa hora e meia à caracterização dos actores, no palco, com pigmentos naturais. A seguir ouvimos algumas explicações sobre o Kathakali e especialmente sobre a mímica, um dos componentes mais impressionantes desta manifestação artística.
Quando volto a embarcar no Malabar Express em direcção ao sul e a Trivandrum, uma chuva impenitente ameaça alagar a estação. No cais, os passageiros procuram situar-se na zona assinalada onde deverá parar a sua carruagem – caso contrário arriscam uma corrida no meio da multidão.
A longa composição – bem mais de vinte carruagens – parte com um atraso razoável para os padrões indianos. Ainda há passageiros em busca do seu lugar: terão porventura falhado a carruagem certa. Não tarda muito, vemos passar também o alarido de um grupo de hijras. Os transsexuais devem ter embarcado em Mumbai, em migração temporária para sul, a responder, talvez, à requisição de celebrações propiciatórias, para que são convocados, como mandam os Vedas, diz-se, e para isso terão vindo a descer até muito para lá da pós-modernidade de Bangalore.
Os hijras deixam uns papelinhos escritos num convexo hindi, tão maquilhado como eles. Não sei o que dizem. Outros passageiros ignoram-nos, mantendo-os entre dedos absortos até os devolverem. Na Índia os acidentes sócio-orográficos, digamos assim, têm também as suas hierarquias. E há muito nos habituámos nestas viagens pela Índia: nada do que nos rodeia nos fala claramente dos seus mistérios e muito menos dos véus que os ocultam. Talvez seja o que Henri Michaux quis dizer no seu Um bárbaro na Ásia: “Na Índia não há nada para ver. Só para interpretar.”