Três ilhas, Faial, Pico e São Jorge, três pontinhos perdidos no meio de um infinito de água, as ilhas do Triângulo. E gente do mar e da terra, e histórias de baleias e baleeiros. E trilhos funâmbulos na crista de falésias e cagarros, gaivotas e outra passarada sobrevoando os caminheiros. E lá em baixo a fajã. Eu queria que aqui flutuassem também as Flores. Mas a geologia às vezes pode mais que o sonho.
Texto e Fotos: Humberto Lopes
Quando chegares, haverá alguns restos de luz, talvez as sombras nem sejam ainda longas, já deitadas no chão, e os pássaros não estejam cansados e irrequietos com a aproximação do lusco-fusco e do descanso nocturno. A lua estará a subir no horizonte e pode ser até que do fundo da rua venha qualquer coisa de mar, um restolho discreto de ondas sobre o recorte negro e áspero do basalto, juntinho ao forte, ou uma ligeira maresia de ilha aventurada entre o casario de Porto Pim. A casa estará fechada e, para lá da porta, apenas silêncio. Terei ido ver as nuvens. Sim, isso dirá a minha voz deixada para trás: Fui ver as nuvens.
Descerei um caminho antigo, estreito, escorregadio, a Canada do Moinho, voando num sopro de vento para perto dos baixios do mar. Darei a volta à baía, pelo areal, contornando também o Museu da Fábrica da Baleia, subirei a encosta e curvar-me-ei sob ramos do que pensarei serem pinheiros, recordados ali naquele Atlântico tão distante do Índico como parentes das casuarinas africanas do Tofo, e pisarei raminhos e areias até ao Farol da Guia. Lá de cima terei o canal a meus pés, sem sombra do mau tempo das páginas de Nemésio, os ares todos sossegados, farrapos vermelhos ou alaranjado-negro de nuvens abraçados ao cone do velho e silente vulcão, o Pico. Devagar, quase imóvel, suspenso sobre a água, lá vem da Madalena, como um brinquedo de menino ilhéu, o Cruzeiro das Ilhas com os últimos passageiros do dia. Penso com as palavras de Raul Brandão em As ilhas desconhecidas: “O que me vale é que saio e dou logo com o Pico, que é eterno. Encontro-o sempre: ao voltar duma esquina, a sair de casa, ao saltar da cama. Hoje decidiu morrer em violeta mas, antes de morrer, passa por todos os tons do violeta. Desfalece e por fim envolve-se numa nuvem para o não vermos exalar o último suspiro. Desconfio que foi posto ali de propósito e à distância calculada para nos atrair e encantar”.
“É Dezembro e um tempo bonançoso guia os passos do andarilho neste Faial de vistas espantosas. O que de melhor tem uma ilha é o panorama que se abre no horizonte e que a completa”, escreveu Raul Brandão há cem anos. Não, não estou certo disso, não creio que possa ser verdade, ainda que seja grande a tentação de crer em tal, tantos são os prodígios paisagísticos que rodeiam as ilhas. Por exemplo, temos no Faial os trilhos de subida e descida da Caldeira, e que andam depois por ali às voltas, a ponta dos Capelinhos, falésias sobre o mar, campos bordados de verde. Mas que visão se poderá sobrepor algum dia na memória à que ontem nos encheu os olhos de súbito quando nadávamos na baía de Porto Pim? O Inverno chega às ilhas mais tarde e as águas mantêm-se cálidas Dezembro dentro. E há lá, naquele sítio ao fundo da baía, o segredo de um ângulo que revela, num vão entre os morros que rodeiam o areal, o imenso cone do Pico coberto pelas primeiras neves invernais. É tudo isto uma combinação improvável, um acidente, um milagre de acasos, uma ventura, como na harmonia das canções persas clássicas. Nenhuma fotografia, por mais generosa de pixels e artimanhas estéticas poderá exprimir com um grão de fidelidade sequer a emoção do observador emudecido. É tal a graça deste arquipélago.
O Faial, apeadeiro marítimo de iates e outras embarcações
E outros mil passeios haverá e nenhum deles capaz de piruetas ou cabriolas que desfaçam a naturalidade dos caminhos urbanos afeiçoados àquela bem-aventurada harmonia de mar e terra. A Horta, capital da ilha do Faial, ali à mão de semear, é vizinha da pequena baía de Porto Pim. Podemos ir pela Rua da Rosa, rua de cariz popular, meio rural e meio marítima, se quisermos respirar a luz, e logo acharmo-nos diante do desenho esboçado da enseada que acolhe as embarcações em busca de abrigo naquele pontinho no meio do Atlântico. Muitos dos iates que por ali passaram ao longo de décadas deixaram testemunho da escala: pinturas murais, coloridas, reconhecimento do oásis de bonança do Faial. Brel, nos últimos anos de vida ali ancorou e diz-se que foi no Faial que recebeu, em 1974, a notícia da morte do seu amigo Georges Pasquier, a quem dedicaria uma das suas últimas canções, Jojo, um belo hino à amizade.
Depois de umas horas no mar, realmente como esquecer uma noite de pausa na navegação? Mesmo prosaica, é certo, vindo o viajante de São Miguel, a bordo do Santorini, o navio de pavilhão grego que fazia a ligação semanal até às Flores, deixando passageiros na Terceira, no Faial, no Pico e em São Jorge? Não era necessário nenhum barco de cruzeiro, um iate aventureiro; fazíamos quase, naquele tempo, o mesmo, e até de uma certa maneira especial, com a verdade dos passageiros-gente-da-casa-nas-suas-rotinas-entre-ilhas, carregados de imbambas, mobílias e afins, sacos, bagagens heteróclitas, inesperadas, e até uma boa dúzia de jovens acampados em tendas no convés. As ilhas a passarem ao largo, como num filme em câmara lenta, a uma distância que pouco ou nada revelava rugas ou mudanças de um século. Sim, foi já há um século que Raul Brandão veio encantar-se com estas “ilhas desconhecidas” perdidas no meio do Atlântico, a meio caminho das Américas, prodígio vulcânico de paisagens memoráveis e meteorologias caprichosas fazedoras de horas e dias únicos. Isso, lembrava o meu amigo Gilberto, de São Mateus, lá na Terceira: quem sabe se vai fazer sol ou chover no minuto seguinte?
Ali ficava o Santorini ancorado, luzinhas penduradas entre os mastros toda a noite, antes de partir para São Jorge e para as Flores. E antes de nos recolhermos ao camarote, abancávamos no Peter Café Sport, pois onde mais podia ser? Não porque ficava diante da Marina e da esplanada de onde se vê a baía e se respira o ar marítimo, não porque víamos as luzes do Santorini ou porque a comida era boa e as memórias um tesouro para absorver como ar marítimo da noite. O Peter Café Sport nasceu em 1948, sobra-lhe (apesar da história se ter vindo a fazer com as escalas dos viajantes, ou mesmo até por isso) uma bem açoriana pátina; ali abancaram também, nestas várias décadas, uma boa soma de marinheiros embarcados em voltas ao mundo ou simplesmente em travessias do Atlântico. De resto, o Faial esteve quase sempre na rota de embarcações e de viajantes ilustres. Como Mark Twain, na época em que andou a escrever The Innocents Abroad e visitou a Palestina e o Próximo Oriente.
Baleeiros: coragem, história e arte
Nos dias em que Porto Pim era o abrigo açoriano, subimos ao primeiro andar, à parte museológica do Peter Café Sport. Ao Museu do Scrimshaw, cuja história se confunde com a história da família Azevedo – sim, a do apelido que dá nome à marginal da Horta. O museu foi fundado há quase 40 anos, na segunda metade dos anos 80, mais ou menos na altura do fim da caça à baleia nos Açores.
Os açorianos fizeram história, pode dizer-se: a caça baleia, uma das principais actividades profissionais do Faial e do Pico, deu lugar ao desenvolvimento do ecoturismo. Antes, quando chegou a haver no Faial 60 ou 70 botes baleeiros (as erupções dos Capelinhos e a subsequente emigração reduziram substancialmente a comunidade que se dedicava à caça de cetáceos), havia nascido já a arte do scrimshaw, a arte da gravura sobre osso de cetáceos, um dos ex-libris mais notáveis dos Açores. Disso se ocupa o acervo do Museu do Scrimshaw, um dos melhores do género em todo o mundo e, sobretudo, testemunho de uma certa cultura marítima dos Açores. Nas vitrines e sobre as paredes do primeiro andar, por cima do café, o museu exibe centenas de peças com quadros da vida quotidiana do Faial e do Pico, cenas marítimas e rurais, representações familiares e de trabalho doméstico e profissional. São peças de arte, expressão de hábeis e inspirados artistas das ilhas, mas também documentos etnográficos e retratos individuais de gente concreta das ilhas. O museu não é apenas uma prova da destreza técnica e invenção dos artistas ilhéus; é sobretudo uma memória histórica dos tempos de glória dos corajosos marinheiros açorianos, gente presente noutros mares e oceanos. Escrevia Herman Melville em Moby Dick, “no small number of these seaman belongs to the Azores”.
O ecoturismo e o enoturismo
O arquipélago já havia merecido, há uns anos, a classificação de um dos melhores destinos para ecoturismo do Mundo. A extensão de actividades nesse domínio alargou-se, entretanto, e inclui agora múltiplas opções, susceptíveis de interessar uma variedade significativa de viajantes. Geoturismo, passeios pedestres, observação de aves e de cetáceos, vela, cruzeiros, mergulho, nadar entre golfinhos – eis algumas das actividades promovidas num espaço em que o turismo rural é uma parte importante da experiência do viajante. E como esquecer as nuvens, sim as nuvens que nos Açores são, com a luz, uma parte íntima da paisagem? De novo, a voz do autor de As Ilhas Desconhecidas: “Devo explicar que todas estas ilhas têm uma nuvem sua, uma nuvem própria, independente das outras nuvens e do céu, e com uma vida à parte no universo”.
Também o enoturismo tem vindo a ganhar uma dimensão considerável. O arquipélago produz vinhos, brancos e tintos, variados, de acordo com as características vulcânicas das ilhas e dos lugares. À beira da Madalena do Pico, na Criação Velha, fica a paisagem vinícola protegida do Pico, com classificação da UNESCO. É, verdadeiramente, uma paisagem assombrosa, as vinhas de curraleta junto ao mar, tal como nos Biscoitos, na Terceira, com murinhos de lava para protecção da vinha contra os ventos marinhos e conservação do calor. E mesmo na fímbria do mar os mais curiosos encontrarão sinais da actividade de vitivinicultura – as marcas dos rodados dos carros de bois que ajudavam no embarque do vinho. Toda a história da ligação do Pico, a ilha de clima mais seco, a essas actividades aprenderá o viajante que se dispuser a passar um par de horas no Museu do Vinho, na Madalena do Pico. Umas voltas pedestres pela Criação Velha completam o giro – os trilhos estão bem assinalados e nunca se perde de vista, na linha do horizonte, para o interior da ilha, a montanha do Pico, quase sempre envolta nos seus eternos farrapos de nuvens.
Andanças de mar e terra
Os trilhos pedestres serão talvez, entre todas essas seduções do arquipélago, as mais populares. São um tesouro quase sempre à mão, em qualquer lugar se pode dar à perna por tudo e por nada. Oficialmente contam-se mais de duzentos e estão listados em https://parquesnaturais.azores.gov.pt/pt/trilhos, site onde é possível também obter informação sobre todos os parques naturais dos Açores.
A imaginação, preferências ou paixões dos andarilhos organizam o resto. No Faial, tal como nas outras ilhas do grupo central, as caminhadas ganham em ser articuladas com visitas aos pontos essenciais do Geoparque dos Açores. O percurso circular da Caldeira, uma das maiores do arquipélago, e a sua articulação com o Trilho dos Dez Vulcões é apenas um entre muitos, e dos mais estimulantes. Com quase vinte quilómetros de extensão, vai do miradouro da Caldeira ao Vulcão dos Capelinhos, formação geológica que resultou das sucessivas erupções vulcânicas que a partir de Setembro de 1957, e durante um ano, ali ocorreram. A visita ao Centro de Interpretação, junto ao farol outrora soterrado pelas erupções é imprescindível.
São Jorge traduz-se nas Fajãs, poderíamos simplificar. E já seria tanto. A ilha é uma estranha varanda sobre o mar, alta, longiforme, rodeada de breves pedaços de terras tropicais, microclimáticas, com jeito de quem esconde um qualquer paraíso. Desçamos às fajãs, uma por uma: dos Vimes, de São João, do Ouvidor, dos Cubres – são quase meia centena. Subamos depois à Serra do Topo e toda essa terra parecerá comandar uma espantosa escotilha de navios irreais, feitos da matéria do sonho.
Na ilha do Pico, também como nas suas congéneres, há trilhos em conjuras de ligar lagoas de lendas ao litoral. Entre todos esses percursos, um dará asas ao caminheiro. Se o acaso o entender, metê-lo-á até no meio de nuvens e nevoeiros, que no arquipélago sempre podem fazer inesperada companhia aos passos do andarilho, mais ainda se o empreendimento for subir os dois mil trezentos e tal metros do Pico, a montanha mais alta de Portugal. Parte-se da chamada Casa da Montanha e o percurso pede umas boas horas de duro caminhar, sete a oito, ir e vir. A pequena parte final, da cratera até ao cimo do chamado Piquinho, é uma subida de gato, a quatro patas. Lá em cima, em raros dias claros, sem as quase fatais nuvens do arquipélago, as ilhas e todo o azul do mar e do céu pedem palavras que não há. Talvez só Raul Brandão, em As Ilhas Desconhecidas, as tenha conseguido reunir, para conseguir converter, com inigualável génio e arrebatamento, paisagem em literatura, a melhor paisagem de Portugal. “É majestoso e magnético. Está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial. Esta noite é um sonho: o cone muito nítido emerge de nuvens brancas que o rodeiam e parecem elevá-lo num triunfo ao céu. Às vezes, de Inverno, a neve brilha lá no alto com reflexos de jóias, outras são as nuvens que lhe dão formas extraordinárias. Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Ele enchia-me a vida”.
