Celebrado escritor e biólogo, Mia Couto é um viajante, mas sobretudo um viajante interior. Das grandes caminhadas, elege o percurso que nos leva a atravessar as fronteiras pessoais. Conhecedor do Mundo, mas sobretudo da alma humana, é um entusiasta da viagem em si, que faz do mesmo modo que vive: sem expectativas
Texto Carla Santos Vieira Foto:Lia Costa Carvalho
T&S: O ambiente, a cultura em que nos encontramos inseridos e com a qual temos contacto diário influencia muito a nossa personalidade e também aquilo que fazemos, mas viajar e alargar horizontes, viver outras realidades também nos torna diferentes. Até que ponto é que para a sua obra é ou foi importante/ determinante ter conhecimento e viver experiências em países distintos?
MC: A viagem não começa quando se percorrem distâncias. A viagem só começa quando atravessamos as nossas fronteiras interiores. Sem essa ousadia de sairmos de nós mesmos, podemos dar a volta à Terra e não teremos nunca saído do mesmo lugar.
Eu comecei a viajar nesse sentido de me ausentar de mim à medida que fui perdendo o medo. Até ser adulto, qualquer pequena viagem era sentida como uma espécie de perigo mortal. Não era um medo físico, um comum receio de andar de carro ou de avião. Era um medo existencial como se antevisse uma pequena morte em cada uma dessas anunciadas viagens. Na verdade, se a viagem é verdadeira existe sempre essa pequena e transitória perda de nós mesmos. E felizmente que existe. Precisamos dessa pequena morte para sermos outros. É por isso que, no regresso, precisamos tanto de contar episódios, de partilhar fotografias, de mostrar os vídeos. Isso não resulta apenas do prazer da comunhão de vivências. É também um modo de regressarmos a nós, que já somos outros depois de termos saído.
T&S: Gosta de viajar?
MC: Viajar e viver são uma única coisa. Comecei a viajar sem ter saído do meu bairro. Eu era um aluno muito distraído, sentava-me junto a uma janela da sala de aulas. Espreitava o pátio anexo e ali me projetava em sonhos. Revisitei essa escola agora, depois do ciclone na cidade da Beira. Percebi como era pequeno esse átrio onde me perdia em distraídas contemplações. Quando eu era menino aquele parecia um espaço imenso. Era eu que o inventava. E é isso que fazemos quando viajamos. A maior parte daquilo que vemos resulta da nossa criação. Inventamos essa grandeza para esconder a pequenez das nossas vidas.
T&S: O que o atrai mais num destino de viagem?
MC: Para mim o destino da viagem é a viagem em si mesma. Eu sou dos que me divirto mais nos preparativos do que na viagem em si mesma. Ainda não se escolheu o destino e eu passo dias procurando fotos, percursos, dicas de lugares e passeios. E depois acabo não cumprindo nada do que planifiquei. Viajo como vivo: sem expectativa.
T&S: Se, de todo o Mundo, tivesse de optar por escolher um local para viver e de onde nunca mais pudesse sair nem para passar um fim-de-semana fora, que local seria esse?
MC: Já escolhi. Ou melhor já fui escolhido. A minha casa nas imediações de Maputo. Essa casa foi sendo construída durante anos por mim e pela minha família. Fui eu que sonhei aquelas paredes. Fui eu que trouxe as sementes e plantei cada uma das árvores. Como fez o avô de Saramago eu posso abraçar cada um daquelas árvores e cumprimentá-la pelo nome. Aquele lugar é feito de histórias. Posso ler aquele lugar como se lê um livro.
T&S: Qual foi, até hoje, a grande viagem da sua vida?
MC: Há uns três anos eu e o meu filho percorremos parques e reservas naturais de Moçambique. Dávamos apoio científico à produção de um desses documentários televisivos sobre fauna e flora. A maior dos parques em Moçambique não são ainda lugares de turismo organizado. E é aí que está a graça. Ficávamos em tendas que montávamos onde nos desse na gana, andávamos sem plano nem bússola, éramos donos do tempo. Mas havia um detalhe inesperado. A produtora televisiva tinha levado uma cozinha ambulante e um chef de cuisine que nos preparava um jantar do mais requintado que se possa imaginar.
T&S: Qual é a viagem que ainda não fez e que continua a chamar por si?
MC: Gostava de visitar a Sicília. Beneficiei de uma residência literária na Umbria, na Itália. Foi um mês e meio repleto de pequenas viagens. A Itália tem aquilo que mais me atrai num país: a diversidade de gente, culturas, paisagens. Portugal também é surpreendente como uma nação, que sendo pequena, se desdobra em mil destinos.
T&S: Um escritor é também um viajante?
MC: É inevitável. Mesmo que na maior parte dos casos ele invente as viagens. Mesmo que não tenha saído do seu quarto. Ele viveu essas imaginárias deslocações como sendo reais. O sonho é a nossa primeira viagem. De todos, não apenas do escritor.
T&S: Já alguma viagem serviu de inspiração para alguma das suas obras?
MC: Sim. Viajei para o parque do Zinave, no Sul de Moçambique, e mantive um encontro com um caçador que vivia no lugar mais ermo e isolado que se pode conceber. Aquele encontro serviu de inspiração para o início do Jesusalém. Na verdade, viajamos mais por pessoas do que por lugares.
T&S: Considera que a alma humana é diferente de país para país, de cultura para cultura, ou que, no fundo, essa essência é sempre a mesma?
MC: Não creio que se possa falar em essência quando se trata da espécie humana. A diversidade genética e cultural que vivemos faz parte da nossa condição humana. Somos uma única humanidade por causa dessa capacidade de produzir diversidade. E é um erro profundo tipificar e buscar identidades que actuem como fortalezas. África sofre muito com esta construção de estereótipos. Às vezes, eles são construídos pela positiva. Como por exemplo, a referência idílica aos “cheiros de África”. A miséria em África (como em qualquer continente) não cheira bem.
T&S: Na sua opinião, o que move um viajante? Porquê esta necessidade, esta vontade de viajar a que assistimos cada vez mais e que se tornou mais banal?
MC: Somos assim, eternos apaixonados pela ideia da viagem porque os nossos antepassados instituíram a viagem como um dos pilares da nossa cultura comum. Nós não fomos apenas caçadores recolectores que durante centenas de milhares de anos vaguearam pelos grandes espaços. Fomos viajantes pelo gosto da descoberta. Somos caçadores, somos movidos pela curiosidade, erguemo-nos para espreitar para além do horizonte. Saímos de África, ocupamos todos os recantos do mundo. Criamos assim uma ideia de mundo, uma vontade infinita de partir.
T&S: E o ambiente? À medida de se viaja mais, multiplicam-se as agressões ambientais, seja por exemplo pelo tráfego aéreo que se intensificou tanto, seja pela presença demograficamente exagerada em países turísticos, etc. Haverá modo de travar este aceleramento que parece prejudicial? Haverá alternativas?
MC: As grandes agressões contra o meio ambiente não podem ser banalizadas: um sistema de produção que olha a natureza como um recurso e as pessoas como recursos humanos. É essa procura desenfreada do lucro que acaba matando o turismo e a vitalidade dos lugares.
T&S: Qual é o principal inimigo de um viajante?
MC: É pensar que já se conhece. Ou que se ficou a conhecer. Escuto-me a mim mesmo dizer coisas de uma enorme arrogância como por exemplo: conheço a Índia, conheço a China. Nós não conhecemos nem sequer a cidade onde vivemos…
Outro risco é pensar que o mais importante são as paisagens e não as pessoas. Há ainda outro inimigo que é ter medo de se perder. Sem nos perdermos não chegamos nunca a conhecer nada nem ninguém.
T&S: Quantas pátrias pode um escritor ter?
MC: Quantas pátrias ele (ou ela) sentir que são os seus lugares de nascença. Todos continuamos nascendo muitas vezes e em muitos sítios.
T&S: Sente falta do Moçambique da sua infância?
MC: Sim e não. Tive uma infância infinita. E continuo a viver em estado de infância, isto é, completamente disponível para ficar espantado e encantado. Mas reconheço que fui uma criança privilegiada. E que esse tempo, que foi onde aprendi a ser feliz, não terá sido um momento histórico muito feliz para grande parte das crianças de Moçambique.
T&S: Como é que nessa altura imaginava Portugal?
MC: Portugal existia na forma de histórias, de vozes que emergiam das narrativas que nos eram transmitidas pelos meus pais. Como todos os emigrantes, os meus pais contavam histórias, inventavam nesses relatos a pátria de que sentiam saudade. Eu comecei a escutar Portugal antes de o visitar.
T&S: Ainda se senta a observar as pessoas a passar e a imaginar as suas histórias?
MC: Confesso que sim. Sento-me numa esplanada, num banco de jardim e deixo-me ocupar por quem passa. Como se esses que passam, caminhassem por dentro de mim para me dizer: eis a minha história. É um jogo interminável. Não é preciso nada, não se tem que ir a uma loja abastecermo-nos de nenhum apetrecho de viagem. Precisamos apenas de tempo, de humildade, de capacidade de suspender temporariamente a sua existência. Parece uma receita esotérica, um conselho saído de um manual de auto-ajuda. Não tem nada a ver com isso. Tem a ver com a capacidade de ser feliz.