Aqueles que “passeiam pelas terras verdes da Guiné que cruzam o céu das ilhas” dificilmente a esquecerão. Cabral descreveu-a assim num dos seus poemas…
Texto: Alexandra Baptista
Fotos: Tommy Simonsen
“E fez-se ouvir na Europa…e fez-se ouvir nas Américas e fez-se ouvir pelo mundo”, mas de tão falada que é pelos seus constantes conflitos políticos a poucos atrai.
Serão uns cem mil por aí, por ano, aqueles que se atrevem a ver o rio Geba no chamado país dos mil rios. É visitado principalmente por biólogos, cientistas, ornitólogos e profissionais da pesca desportiva.
Em Bissau, na capital, os viajantes são recebidos sem espanto, sem surpresa. A vida segue normalmente entre a informalidade e uma humidade que não faz parar o trânsito.
Estacionados no Aeroporto Internacional Amílcar Cabral, que por estes dias conhece reformas, os táxis de marca Mercedes-Benz dos anos oitenta, todos pintados da cor azul, são partilhados normalmente.
Uns cento e cinquenta francos CFA, (vinte e cinco cêntimos) servem perfeitamente para uma viagem, onde se ajustam três viajantes atrás, perfeitos desconhecidos com caminhos comuns.
Nada de novo no país. Dado o calor, os motoristas fazem-se acompanhar de uma pequena toalha turca. Equipam os táxis com pequenos objetos que denunciam gostos, uns mais cuidados, outros mais decorados. Peluches. Pequenos tapetes. Aromas baratos. Fotos de família em tamanho reduzido.
São jovens estes motoristas e normalmente conduzem o negócio de alguém. Recorrem a Alá para agradecer as pequenas graças da vida. Saúde, principalmente.
Antiga colónia vestida de mesquitas
Nada de novo no país que um dia Amílcar Cabral, o poeta agrónomo de Bafatá, sonhou tornar grande.
O povo reza para Meca, a cidade mais muçulmana das capitais muçulmanas, cidade na Arábia Saudita sagrada para o Islão e berço do profeta Maomé e da sua fé, um local que arrasta centenas de guineenses quando chega a hora certa da peregrinação anual. Até aviões fretados, até dinheiros não imaginados aparecem por essa altura do ano. Por isso mesmo, não é de estranhar ver a antiga colónia portuguesa vestida da cabeça aos pés com variadas mesquitas a dobrar os joelhos dos homens. Até na praça principal surge novo investimento estrangeiro, em torno da Lagoa de Nbatonha, onde não falta uma mesquita. Nada soa a estranho. O povo é maioritariamente muçulmano e puxa dos seus tapetes à hora certa para dar graças.
O Bandim
Com os tais motoristas dos táxis desgastados e obrigados a circular à força das necessidades fala-se o crioulo da Guiné e um francês bem mastigado. O português também serve, mas são menos os que o falam. O vizinho Senegal, que cresce no continente, afirma-se no país e influencia todos os afazeres. As suas fronteiras são portas abertas para a saúde que falta, para o comércio, para a educação de que se precisa. Mais dia menos dia todos os motoristas por lá passarão em busca de uma necessidade maior.
A meio da Avenida Combatentes da Liberdade da Pátria encontramos o maior mercado informal do país, o Bandim. Entre o aeroporto e a praça central, homens, mulheres e crianças vendem tudo e ainda mais alguma coisa. Ficam à beirinha da estrada, sentados num pedação de chão qualquer, ou a circular por entre os outros comerciantes. A moda é africana e produzida por alfaiates locais e de países vizinhos. Há tecidos chineses, produtos de higiene… sapatarias a céu aberto… barbearias com todos os cortes de cabelo modernos e arrojados, corredores estrangulados que sugerem lugares estranhos e escondidos aos olhos de quem chega. O cinema surge a custos inferiores, emissões de futebol, vendas de comidas locais e salas de jogos improvisadas em balcões de cimento. É um mundo de ofertas a preços católicos que chama até as guineenses emigradas na Europa que aqui chegam para comprar os produtos mais queridos lá fora.
De Bijagós e de tradições
Assim vive este país pequeno que não tem muito mais do que um milhão e meio de habitantes e que acolhe vários estrangeiros dos países mais próximos.
Bissau é corredor para os viajantes. O destino é o Arquipélago dos Bijagós, conhecido pelas suas oitenta e oito ilhas. De origem deltaico, não se descreve de qualquer maneira, nem nos devemos arriscar a tal. A paisagem é grandiosa. As ilhas, poucas delas habitadas, guardam tesouros da fauna e da flora. Os pescadores desportistas que andam mundos para praticar a pesca NO KILL sabem do que falo. São conhecedores destas águas, destas paisagens, deste modo de viver do povo bijagó, o povo das ilhas que ainda considera as suas tradições, que as respeita e que as transmite aos mais novos através de rituais sagrados que decorrem nas florestas a olhos escondidos, como o chamado “fanado”, ritual puramente africano onde os jovens passam temporadas nas matas com a finalidade de aprenderem os grandes segredos do saber viver em sociedade. São recebidos normalmente na aldeia, com cerimónias alegres onde não faltam cantares e dançares pelos dias afora. Nestas ocasiões são circuncisados e apresentados à sociedade bijagó. As chamadas “badjudas”, raparigas virgens, também passam por rituais de iniciação orientadas pelas mulheres mais velhas das aldeias.
Tudo acontece para o bem de um povo que se sabe ser animista.
Um arquipélago pouco pisado
Morada segura de aves migratórias, de tartarugas-verde, de várias espécies, de hipopótamos de água doce e salgada, os Bijagós, são o cenário perfeito de estudo para os tais cientistas que vão chegando. O arquipélago é pouco pisado, nada salpicado pelo turismo massificado que invade países alheios onde os bichos são atração certa.
Enquanto os especialistas descobrem as ilhas, o povo vive com os recursos que tem à mão – pesca local e tradicional e bolanhas para o cultivo de arroz (em terrenos pantanosos) à custa da chuva que não dá sossego à terra quando a Europa brinda ao Verão. São três meses intensos de chuva. Quando é Outubro o país renasce esverdeado.
De há uns anos para cá, e volta e meia, a Organização Internacional das Migrações, OIM, fixada em vários pontos estratégicos do deserto do Saara, costuma trazer de volta a casa vários jovens guineenses que tentam fugir à sua sorte na Guiné-Bissau. Muitos deles de Bafatá, de Gabu, de Bissau…de outras tantas regiões. Para estes rapazes, os sonhos estão para além do seu país. A vida não se faz à medida dos sonhos grandes do poeta Amílcar Cabral, o crioulo que sonhou e ajudou a construir a independência aos colonos portugueses.
Para estes guineenses que se endividam para atravessar várias fronteiras rumo ao sul da Europa, a vida é amarga. Muitos deles nunca pisaram sequer o Arquipélago dos Bijagós.
Ilha de Kéré
Sónia e Laurent Durris, são proprietários do eco resort que faz muita gente feliz na Ilha de Kéré, nos Bijagós. Ela portuguesa, ele francês, juntos empenhados em dar a provar a cultura e o viver de cá. Sónia e o marido envolveram-se profundamente na sociedade bijagó. Aqui casaram tal como mandam os costumes, aqui criam a pequena filha que já fala o crioulo sem falhas. Está sempre lotado ou quase sempre o hotel de poucos quartos que instalaram na ilha que nem água tem, mas onde nada falta. A maioria dos hóspedes volta quase sempre e são na sua maioria franceses, amantes da pesca desportiva, da natureza, gente que procura mundos aparte dos mundos conhecidos e sobejamente carregados de almas. Ali mora a paz. A tranquilidade.
Na pequena Ilha de Kéré também se cruzam os estrangeiros que trocaram as suas vidas favoráveis e confortáveis lá fora pelo país verde. Muitos estão envolvidos em organizações não-governamentais, em instituições internacionais sediadas em economias ricas. São italianos, espanhóis, franceses e portugueses.
O mar que é para muitos um cofre azul
Das ilhas para o continente, a meio de um mar pintado diariamente com largas, compridas e coloridas canoas atoladas com tudo e mais alguma coisa, combate-se a pesca ilegal diariamente. O mar rico em pescado é um cofre azul para muitos. No sul do país, a floresta sub-húmida de Cantanhez, em Tombali, onde vivem grupos étnicos como os nalus os tandas e sossos, é habitat de chimpanzés e macacos que se deixam ver à luz do dia, morada de comunidades que sofrem ameaças constantes devido à desflorestação e à exploração de recursos. As populações, preocupadas com o futuro e sem outros ganhos, sonham com grandes plantações de caju e vão abrindo caminhos para o ganha-pão.
Na sede do Parque Nacional de Cantanhez, uma base está montada para que o estrangeiro se sinta bem recebido e não são assim tão poucos os estudantes que chegam de lugares remotos e desenvolvidos para fazer da floresta o seu objeto de estudo.
O IBAP (Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas) da Guiné-Bissau tem, entre outros lugares, este parque nacional como seu. Os raptos de chimpanzés bebés são comuns e dão-lhe que fazer, vendo-se frequentemente a braços com mais um chimpanzé. A população é frequentemente sensibilizada por organizações internacionais, mas os caminhos da mudança pedem tempo e resiliência.
“Com que construímos o futuro…”, escreveu Amílcar Cabral. Com tempo, necessariamente!