E basta uma frase para que se imagine o céu carregado de azul e cinza, para que a temperatura caia até valores negativos e no horizonte tudo se pinte de branco… Em Svalbard, a terra do urso polar, o rei do Ártico, é assim que o Inverno se veste
Fotos Visit Svalbard e D.R.
O nome invoca um universo quase mágico, de planícies brancas geladas e silenciosas como as que surgem em A Bússula Dourada quando a jovem Lyra Belacqua se apanha num território governado por ursos polares. É neste cenário que, ao lado de actores como Nicole Kidman, Daniel Craig e Eva Green, Dakota B. Richards veste a magnífica personagem que num ambiente aparentemente inóspito, combaterá uma maléfica ordem instituída cujo propósito será o de cercear o livre pensamento. A obra de Philip Pullman adaptada por Chris Weitz ao cinema em 2007 confere a este território do Ártico uma aura ainda mais enigmática do que aquela que a melodia do próprio nome poderá despertar nas nossas mentes. Svalbard poderá sugerir-nos um nome viking, um nome de um guerreiro, de um duro explorador, grandioso e implacável, mas não… Na verdade invoca apenas algo também grande e poderoso, mas tudo menos místico: o frio, o gelado frio ártico daquela costa. Arquipélago banhado pelo Oceano Glaciar Ártico a norte, pelo Mar de Barents a oriente e pelo Mar da Noruega e o Mar da Gronelândia a ocidente, é desta sua localização e das condições que dela derivam que nasce o seu nome, ainda em nórdico antigo: sval (frio) bard (costa), portanto a terra das margens frias…
A “lotaria” do Ártico
São nove as ilhas que constituem o remoto arquipélago ártico: Spitsbergen, Nordaustlandet, Edgeøya, Barentsøya, Prins Karls Foreland, Kvitøya, Kong Karls Land, Bjørn Island, Hopen e ainda um número de pequenas ilhotas, num território com um total de 24 metros quadrados. A maior ilha de Svalbard é Spitsbergen, que ocupa mais de metade do arquipélago, descoberta em 1596 pelo holandês Willem Barentsz. Representando o ponto permanentemente habitado mais próximo do Pólo Norte, Svalbard é, de facto, terra dos ursos polares, numa razão de cerca de três mil exemplares (arquipélago de Savlbard e Mar de Barents), que supera a população humana ali existente. Também conhecido como o Rei do Ártico, o urso polar constitui um dos maiores animais carnívoros do Mundo. Este mamífero marinho que passa a maior parte da sua vida à deriva, no gelo, poderá ser encontrado em qualquer região ou ilha de Svalbard, sendo as regras de comportamento fora de casa bastante restritas, já que os mesmos podem atacar muitíssimo depressa e sem aviso prévio. Em Svalbard os confrontos ocorrem culminando em desenlaces trágicos tanto para os humanos como para estes imponentes animais, que na maior parte das vezes agem em virtude da curiosidade que lhes é característica. Por esta razão, as populações são encorajadas a fazer-se acompanhar por uma arma suficientemente potente, bem como uma pistola de sinalização, que poderá garantir que o mesmo se assuste e se afaste. Protegidos pela lei internacional desde 1973, são considerados como uma espécie ameaçada, sendo que durante o Inverno conseguimos encontrá-los por quase todo o arquipélago enquanto que durante o Verão costumam seguir o gelo e migrar para nordeste. Principalmente ameaçados pelo desaparecimento do gelo, os ursos polares começam a passar mais tempo em terra, aumentando assim os encontros com a população humana durante os meses de Verão. É esta a época em que se torna mais provável vencer a “lotaria” do Ártico, aumentando a possibilidade de se observar de perto estes majestosos animais recortados contra os céus azuis-ciano, as garras curvas e prontas a caçar, os olhos escuros e redondos a examinar incansavelmente o ambiente e o pelo grosso e na verdade translúcido, a lembrar o branco apenas em virtude do modo como reflecte a luz.
De animais majestosos e do… Homem…
O urso polar não é, no entanto, o único habitante peludo desta região; as raposas polares, que vestem o tom da pelagem de acordo com as estações do ano, e a rena europeia são espécies locais, a par com os leões marinhos e os cetáceos. A propósito de estes últimos, Svalbard assistiu no passado a uma verdadeira corrida internacional à caça da baleia, que se estendeu desde o início do século XVII até meados do século seguinte em virtude dos preços do óleo da gordura e das barbatanas. O cenário destes dias terá sido tudo menos mágico; até ali realizavam-se então inúmeras expedições de baleeiros de origem holandesa, britânica e alemã verificando–se, no pico, mais de 300 navios activos em torno da ilha. Na costa noroeste de Spitsbergen, em Smeerenburg, erguia-se a estação terrestre mais famosa, com 16 edifícios que abrigavam até 120 baleeiros e oito fornos onde a gordura animal era transformada em óleo. A pesca comercial da baleia-da–Groenlândia (a única considerada nativa já que habita o Ártico ao longo de todo o ano), que pesa cerca de 80 toneladas e pode viver até 200 anos, arrasaria a espécie quase por completo, registando-se na região apenas cerca de três mil exemplares em 1910. Actualmente é a baleia azul, o maior animal do planeta, que atrai ali inúmeros fotógrafos de vida selvagem que todos os anos visitam a região para registarem a presença deste viajante solitário que chega a alcançar os 28 metros de comprimento.
Uma terra onde não se pode nascer nem morrer
Longyearbyen, a capital da ilha de Spitsbergen (a única com população residente), conta ainda mais algumas curiosidades absolutamente espantosas que destacam Svalbard do resto do Mundo. Representando o local habitado que mais próximo fica do Pólo Norte, as temperaturas que ali se verificam são na generalidade tão baixas que não permitem a normal decomposição, razão pela qual não é permitido morrer-se (ou nascer-se) em Svalbard. O permafrost (solo permanentemente congelado) que ali se verifica mantém congelada a superfície do solo e tudo o que nele se encontrar (e aqui devemos incluir mortos, doenças, vírus…). Assim, desde os anos 50 que sempre que surge a suspeita que alguém possa estar a aproximar-se dos últimos momentos de vida se realiza o seu transporte aéreo para o continente. Ao que parece, na década de 90 uma equipa de cientistas exumou uma série de corpos com o intuito de estudar o fenómeno de permafrost, verificando-se então que o corpo de um indivíduo que morrera em virtude da pandemia gripal de 1918 guardava ainda o vírus em boas condições e perfeitamente preservado dadas as baixas temperaturas. Este facto levanta diversas questões, já que com o aquecimento global que tem vindo a verificar-se, a pergunta relativa ao ressurgimento dos mesmos vírus deixou de basear-se num “se” para passar a assentar num “quando”. E se nos lembrarmos que o Verão de 2023 acabou de ser classificado como o mais quente de sempre pela americana National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA)…
Deserto de gelo….
Classificado como deserto ártico graças à baixa humidade e precipitação, Svalbard, de onde partiu a expedição que levou o primeiro homem ao Pólo Norte, dispõe de condições de ar quase tão secas como no próprio deserto do Sahara, existindo ali mais de 2100 glaciares com cerca de três a quatro mil anos e em actual estado de recuo. Com cerca de 60 por cento do território coberto de gelo e menos de dez por cento composto por vegetação, não encontramos árvores no arquipélago, já que o Verão é demasiado curto e as plantas dificilmente alcançam os dez centímetros de altura. Óptimo ponto de observação de auroras boreais graças ao clima seco e frio, Svalbard é um dos lugares mais seguros da Terra, com total ausência de criminalidade, dispensando a necessidade de visto ou de autorização de residência para ali se viver e trabalhar. Na verdade, independentemente da nacionalidade de cada um, todas as pessoas são bem-vindas – possível razão pela qual ali conseguimos encontrar naturais de mais de 50 países dos mais diversos pontos da Terra num universo não superior a três mil pessoas havendo, no entanto, limitações no que respeita ao sistema de assistência social, pelo que cada um deverá dispor de meios próprios que garantam a própria sobrevivência e sem os quais se estará sujeito à expulsão do território. Outro aspecto também ele muito curioso será o modo como o álcool é racionado, com cada cidadão a ser autorizado a adquirir não mais do que 24 cervejas ou dois litros de bebidas destiladas por mês, havendo uma tendência para se beber francamente bastante durante a época do Inverno, quando as noites duram cerca de quatro meses… Embora em termos muito mais leves, a herança do trabalho mineiro de 1900 e as consequências do isolamento e do frio fazem-se ainda sentir nos dias de hoje.
A presença da esperança da Humanidade num cenário que anuncia o desespero natural
No lugar que mais rapidamente tem vindo a aquecer em todo o planeta, assiste-se já ao degelo de fiordes, ao aumento de avalanches e ao crescente perigo para o qual a vida selvagem vai avançando. Aqui, as alterações climáticas fizeram subir os termómetros cerca de sete graus centígrados desde o início da década de 70. Na verdade, o Ártico tem vindo a experimentar um ritmo de aquecimento muito acelerado quando comparado com o do resto da Terra. À medida que porções cada vez maiores de gelo têm vindo a derreter durante o Verão em virtude do aumento das temperaturas, mais água tem ficado exposta aos efeitos de aquecimento do sol, que tem vindo a aumentar o ciclo de aquecimento. Os animais que recorrem ao gelo para caçar, como os ursos polares, encontram-se agora ameaçados por esta alteração climática gerada por mão humana. Com o desvanecer do Verão, a escassa vegetação de Svalbard começa a amarelecer, pintando a paisagem da tundra. As alterações têm vindo a ser tão rápidas que a maioria das espécies, porque estavam tão adaptadas ao anterior ambiente, poderão não conseguir evoluir à mesma velocidade. Não deixa de ser irónico ser precisamente aqui, no ponto onde mais se verificam os danos causados pelo Homem, que se encontra eventualmente a salvação da espécie humana, o Silo Mundial de Sementes, ou Global Seed Vault, um armazém escavado por baixo do solo (a mais de cem metros de profundidade) onde desde Fevereiro de 2008 se guardam réplicas de grande parte da fecundidade comestível do planeta. Em caso de catástrofe mundial, será a partir das sementes aqui guardadas que a Terra poderá um dia ser replantada. Oriundas de todo o globo, é neste cofre magnifico que se tem vindo a armazenar sementes que um dia poderão sobreviver-nos, talvez até depois de nos destruirmos a nós próprios…