Num país em que Y Ddraig Goch ou um dragão encarnado domina a bandeira nacional, acreditando-se tratar-se da mais antiga ainda em uso, é certo que o passado, as lendas e as brumas nos atraem. Viajamos, pois, até lugares especiais onde a lenda arturiana perdura
Terra de lendas e de mitologia, o País de Gales ergue a leste fronteira com Inglaterra, cercando-se de águas e mares em todos os outros pontos cardeais. A norte e a oeste encontra o Mar da Irlanda, a sudoeste o Mar Celta e a sul o Canal de Bristol. Num território com pouco mais de 20 mil quilómetros quadrados, guarda ainda 641 castelos – é a região da Europa com mais castelos por metro quadrado – constituindo um país onde há mais ovelhas do que seres humanos – apenas cerca de três milhões de pessoas -, existindo ali mais de dez milhões de animais. Morada de celtas que os romanos dominaram ao longo de 300 anos, o território hoje correspondente ao País de Gales assiste à chegada das invasões anglo-saxónicas com quem os bretões celtas haveriam de combater. É desta era que alguns historiadores afirmam ter nascido a famosa lenda arturiana tão celebrada em tempos medievais e que no século XIX haveria de ser recuperada.
Uma lenda nascida nas brumas
A versão de Godofredo de Monmouth, clérigo galês e um dos mais importantes autores que desenvolveram as lendas arturianas, nomeadamente na obra Historia Regum Bitanniae, situa Artur precisamente no território que viria a tornar-se o País de Gales, descrevendo-o como um rei da Britânia que, em finais do século V, inícios do século VI, terá derrotado os saxões estabelecendo ali um império que se estendeu à Irlanda, à Islândia, à Noruega e à Gália. A lenda é sobejamente conhecida e, poder-se-ia dizer, intemporal já que permanece ainda no imaginário contemporâneo misturando a realidade com a ficção. Artur seria, então, filho de Uther Pendragon (cabeça de dragão) e de Igraine, substituindo o pai na coroa aos 15 anos e travando batalhas de Excalibur em riste, vencendo tudo e todos, mas caindo às mãos do sobrinho Mordred em Camlann, partindo para o descanso final na lendária ilha de Avalon.
Artur em Gales?
As ligações galesas com o mito arturiano ainda hoje perduram, encontrando-se a lenda ainda muito viva no País de Gales e sendo possível revisitar as aventuras medievais percorrendo os lugares que neste país lhe estão associados. Os cenários são avassaladores, com antigos fortes erguidos em colinas, pedras monolíticas, lagos misteriosos e rochas marcadas pelos supostos cascos do cavalo desta figura lendária. Terá Artur realmente existido? Provavelmente sim, constituindo um líder britânico que terá combatido os invasores saxões no século V e cujas vitórias terão sido relatadas por contadores de histórias aumentando assim as lendas e enriquecendo-se cada narração. O homem ter-se-á rapidamente tornado um rei com uma távola redonda preenchida por cavaleiros galantes e um braço direito com poderes mágicos chamado Merlin. Tendo em conta que naquela época nem o País de Gales nem Inglaterra existiam enquanto nações, torna-se muito difícil situar a existência de Artur atrás de uma fronteira moderna. Na verdade, a figura lendária surge em diversas narrativas como tendo participado em batalhas no actual País de Gales, em Inglaterra e na Escócia, pelo que é mais vezes descrito como um guerreiro britânico em combate com as forças invasoras anglo-saxónicas. O facto é que as primeiras referências a Artur foram escritas em galês ou britónico, a língua de onde deriva o galês. À medida que os povos galeses/britónicos iam sendo “empurrados” para o ocidente pelos invasores terão transportado a sua própria língua – e os heróis que a mesma celebra, razão pela qual as lendas arturianas se tornam cada vez mais fortes à medida que neste sentido avançamos geograficamente. O que é certo é que o encanto que a lenda desperta é um pouco universal, com os bardos franceses medievais a cantarem os seus feitos e a adicionarem-lhe atributos de cavalaria que terão sido repescados pelo escritor do século XV Thomas Malory e mais tarde por Tennyson, que transformou Artur num herói inglês autoconfiante, perseverante, arrojado e corajoso. Hoje, no País de Gales, podemos encontrá-lo em diversos pontos e dos quais destacamos nove.
Lago Excalibur, no Parque Nacional de Eryri, em Snowdonia
Existem pelo menos três lagos galeses que reclamam guardar Excalibur, a espada mágica de Artur. São eles os lagos de Llydaw, cujas frias águas – supostamente as mais frias de todo o Reino Unido – se acumulam junto à Montanha de Snowdon, que sobe até aos 1085 metros de altitude; Dinas, que é alimentado pelo Rio Glaslyn, que se estende ao longo de 240 mil metros quadrados e que constitui um bom ponto de pesca ao salmão e à truta; e Ogwen, muitas vezes apelidado como um dos lugares mais belos do País de Gales, todos eles absolutamente maravilhosos e próximos uns dos outros, situando–se no coração do Parque Nacional de Eryri (Snowdonia). Um destes terá que ser o lago…
A Pedra de Artur, em Gower
A verdade é que tanto no País de Gales como no restante Reino Unido existem diversas “pedras de Artur”, mas apresentamos esta, que ainda se encontra no suposto local original, nas colinas de Gower, e a um passeio a pé do Hotel Rei Artur, em Reynoldston. A explicação da sua análise remete para um túmulo do Neolítico, mas a lenda afirma tratar-se de uma pedrita que Artur terá sacudido da sua própria bota a partir de Carmarthenshire (a dez horas de distância a pé), e que terá desde então crescido milagrosamente. Há mesmo quem afirme que a pedra sente sede frequentemente e que ocasionalmente se desloca até um riacho para saciar-se, pelo que se aconselha muita atenção a onde se coloca os pés… Em Gower realiza-se ainda a Wassail Guiser, celebração agendada para os meados do Inverno e na qual as pessoas se vestem de roupas festivas e visitam as casas cantando para os seus residentes. Desta festividade faz ainda parte uma tradição celta que celebra o final do frio e o regresso do sol, a realização de uma Souly Doll, que não se distancia muito no significado e na origem do bolo rei ou das bonecas de pão gregas e italianas, mas que parece ser um dos mais antigos ritos de fertilidade do conhecimento exclusivo das mulheres, um mistério da terra, do lar e do coração. Para se saber mais acerca de estas bonecas de pão, desde o seu passado sangrento à deliciosa tradição folclórica, necessita-se apenas de um avental, de uma panela, de um tabuleiro grande, de sentido de humor e de um grande sorriso….
Camelot, em Caerleon, Newport
De acordo com Godofredo de Monmouth, o autor do século XII que tanto difundiu a lenda arturiana, Camelot, a lendária corte do Rei Artur e a távola redonda onde doze garbosos cavaleiros se sentavam, situava-se precisamente em Caerleon. Na verdade, ter-se-á erguido ali uma fortaleza romana no ano 75 que guardou a região nos 200 anos seguintes, representando Caerleon um dos mais importantes postos militares romanos naquelas ilhas. Actualmente a referida fortaleza representa o Museu Nacional da Legião Romana, que inclui o mais completo anfiteatro (que se diz ter acolhido a távola redonda) e os únicos aquartelamentos dos legionários romanos (à vista) da Europa.
Carn March Arthur, no Lago Barfog, perto de Aberdyfi
O Llyn Barfog (lago barbudo) foi assim baptizado em virtude dos juncos que cercam as suas margens, cobrindo-se de nenúfares amarelos no Verão. No passado remoto (e eventualmente das nossas fantasias) terá sido aterrorizado pelo monstro aquático Afanc até que, montado no seu cavalo, Artur o arrastou dali para fora. A luta terá sido de tão grande violência que Llamrai, o cavalo, deixou uma marca do casco numa rocha que ainda hoje ali se encontra, mesmo nas margens do lago, entretanto adquirindo o nome de Carn March Arthur, a pedra do cavalo de Artur.
Cume de Yr Wyddfa (Snowdon)
Snowdon, a montanha mais alta do País de Gales, esconde no seu cume uma pilha de pedras que assinala o ponto mais alto de todo o território. De acordo com a lenda, Rhitta era um assustador gigante que fizera uma capa das barbas dos seus inimigos e que, sem sucesso, se atreveu a tentar adicionar-lhe a barba de Artur, que o eliminou prontamente, enterrando-o depois debaixo dos gigantescos pedregulhos…
Forte de Dinas Emrys, perto de Beddgelert
Embora restem muito poucos vestígios do antigo forte de Dinas Emrys, este local desempenha um papel preponderante na mitologia arturiana e galesa. Quando, por volta do século V, o rei Vortigern (em galês Gwrtheyrn) se refugiou no que viria a ser o País de Gales, tentou erguer ali um castelo, mas as muralhas desabavam misteriosamente todas as noites e a obra via-se impossibilitada de prosseguir até que o ainda jovem feiticeiro Merlin informou Vortigern que o problema residia no facto de no poço, por debaixo do castelo, haver dois dragões, um encarnado e outro branco, que lutavam entre si. Embora o Dragão Branco dos Saxões naquele momento estivesse a vencer a batalha, seria em breve o Dragão Vermelho quem prevaleceria, simbolizando a luta dos galeses contra a força invasora anglo-saxónica.
A cidade natal de Merlin, Carmarthen
Nos tempos em que a Britânia era uma província romana, já Carmarthen era conhecida como Moridunum, representando muito possivelmente a mais antiga cidade do País de Gales, registada por Ptolomeu no Itinerário de Antonino. Acredita-se que o forte romano date do ano de 75, tendo a arqueologia revelado este lugar como sítio urbano provavelmente já no segundo século. A sua situação estratégica originou a construção de um castelo sob ordem de William Fitz Baldwin por volta de 1094, tendo sido destruído em 1215 por Llywelyn O Grande, que governou Gales durante 45 anos. O castelo seria reerguido em 1223, já como o primeiro do género amuralhado de todo o território. Mantem-se até hoje, naquela mesma colina rochosa debruçada sobre o Rio Twyi, dominando a cidade e a escassa distância do forte romano que o precedeu. Associado ao Priorado de São João Evangelista e São Teulyddog, o Livro Negro de Carmarthen – datado de meados do século XIII – é outra referência importante a este ponto geográfico, admitindo-se que represente um dos primeiros manuscritos escritos apenas em galês que até hoje perduram e cujo nome se deve à cor da encadernação. O mesmo inclui poemas que referem Merlin (Ymddiddan Myrddin a Thaliesin) e possivelmente a Artur. Regressando ao mago, que Godofredo de Monmouth narra em 1188 ter nascido numa caverna nos arredores de Carmarthen, narra a lenda que se uma certa árvore, conhecida como “o carvalho de Merlin” caísse, também a cidade decairia (When Merlin’s Oak comes tumbling down/Down shall fall Carmathen Town – Quando o Carvalho de Merlin cair/Cairá também a Cidade de Carmarthen). A verdade é que em 1978, pouco depois de os seus últimos fragmentos serem transportados para o Carmarthenshire County Museum, a cidade sofreu as maiores inundações de que há memória…
Craig y Ddinas, em Pontneddfechan, onde Artur ainda dorme
Talvez a lenda seja verdadeira, talvez o Rei Artur não tenha realmente morrido e se mantenha ainda adormecido juntamente com o seu exército de milhares de cavaleiros a aguardar a chamada para a batalha na qual reclamarão a Britânia aos saxões. À sua guarda encontra-se ainda um tesouro de ouro e prata protegido por sinos que os despertarão do sono em caso de roubo. Muitas grutas do País de Gales afirmam representar o lugar de descanso de Artur, ainda que temporário, e poucas serão tão encantadoras como Craig y Ddinas, cuja lenda evoca a existência de uma caverna subterrânea escondida sob a sua base, e que se localiza no coração do bonito condado de Waterfall, no sudoeste do Parque Nacional Bannau Brycheiniog (Brecon Beacons),
Avalon ou a Ilha de Bardsey, na Península de Llyn
Em galês é Ynys Enlli e há quem lhe chame a ilha dos vinte mil santos, já que uma numerosa comunidade de monges ali viveu e ali desejou ser sepultada. Terra sagrada deste os tempos celtas, foi destino de peregrinação, erguendo-se ali a Abadia de Nossa Senhora. Naqueles tempos chamavam à ilha “o caminho directo para o Paraíso” e na Idade Média três peregrinações à Ilha de Bardsey equivaliam a uma até Roma. Ponto de observação de aves migratórias por excelência, foi ali estabelecido um observatório em 1953, sendo propriedade actual do Bardsey Island Trust. As suas águas atraem golfinhos, botos e focas cinzentas e no ano passado a ilha tornou–se o primeiro ponto da Europa distinguido com um certificado de Santuário Internacional de Céu Escuro, designação criada pela International Dark-Sky Association (IDA) para lugares que preservam os céus da poluição luminosa. Há quem diga tratar-se do destino de descanso de Merlin, mas também muitos afirmam que é esta a mítica Avalon, onde a Senhora do Lago forjou Excalibur, a espada de Artur, e também o lugar onde este terá sido sepultado após a sua morte, apesar de serem inúmeras as geografias apontadas como o destino final do lendário herói das ilhas britânicas.