…E se Luanda nunca tivesse sido resgatada aos holandeses e se a antiga praça de escravos do norte de Angola, nunca tivesse conhecido a liberdade…e se a guerra civil não tivesse empurrado milhões de angolanos para as suas entranhas…
Texto: Alexandra Baptista
Fotos: Sofia Ah Chak
O destino da metrópole angolana sempre pareceu ter contornos incertos, mas nada do que se vê hoje se poderia adivinhar… Não se adivinhava a enchente de gente, o caos urbano, toda a informalidade que invadiu a cidade, todas as línguas maternas, todos os usos e costumes…!
Não se adivinhava a vida tal como ela é. Não se adivinhava tamanha resiliência. O tempo em contramão. O ganha pão fora de mão. A vendedora de banana pão. A zungueira que se senta no chão, com a bacia de fruta… A menina moça que vende ginguba. O “papito” que cose as calças à margem do desenvolvimento. O sapateiro que costura a vida, na entrada do prédio colonial. A peixeira que arruma a vida na ilha do cabo. O cacuço que paga quase todas as contas, da mamã que serve na Chicala. Adivinhava-se… não!
Não se lhe conheceu, nem menos conhece; destino certo!
Cidade sorrateira…
A metrópole angolana continua até aos dias de hoje a refazer-se a cada instante. Faz-se mais povoada. Mais carregada…
É mãe. É sofrida. É aconchego. É senhora dona de todas as províncias empurrando cada um dos seus filhos e enteados para muitos dos seus inóspitos lugares. Sítios à margem dos prédios e vivendas de outrora que se fazem lugares de vida, embora a vida não seja meiga.
Luanda não se descreve de qualquer maneira; a cidade é sorrateira, tem segredos para além dos segredos. Não se deixa ver e conhecer à primeira vista. Ela anuncia-se apenas. Faz-se de astúcias e engenhos, tal como os caluandas, o povo “bangão” que se orgulha de viver na terra mais financeira do país. Onde reina o kimbundu. Onde as tradições do antigamente batem à porta de todos os angolanos. Onde o quimono e o pano vestem as mamãs grandes.
Não se negoceiam os costumes, nem o mundo moderno; rompe com os hábitos nacionais que se ainda pedem às famílias.
Dominada por mais de 400 anos…
A cidade nasceu e cresceu às portas do mar. Por razões oportunas. Fidalgo da coroa portuguesa, Paulo Dias de Novais liderou a missão de muitos homens, entre eles alguns tementes a Deus e dispostos a espalhar a fé. Isto no século XVI. Comandou o propósito de aqui estabelecer uma base com fins comerciais e religiosos. E aqui encontrou o poder tradicional. O reino de Ndongo, vassalo do reino poderoso do Congo, que tinha o seu coração em Mbanza Congo, no Zaire. Norte do país.
A presença portuguesa que a partir de este lugar se alarga ao interior do país virá a encontrar uma corte poderosa em oposição ao tráfego de homens, mulheres e crianças. A luta contra a escravatura dará fama à rainha Nginga Mbande, sobrinha ou filha, diz-se, do poderoso Ngola Kiluange, o soberano do reino de Ndongo instalado em Malange.
A discórdia instalada. A luta em avanço. Luanda, uma praça de compra e venda de escravos onde hoje o Banco Nacional de Angola, é cartão postal.
Entre 1641 e 1648, outros senão os holandeses também chegam para dar trabalho aos portugueses que já reinavam quase confortavelmente em Luanda. Vencidos os holandeses, os portugueses respiram de alívio e reinstalam-se triunfantes. Ora, a cidade que pertenceu outrora ao reino do Ndongo foi perdendo o seu poderio tradicional às mãos dos colonos portugueses e por mais de quatro séculos Luanda sujeita-se. É vestida pelo estrangeiro, criada temporariamente pelo colono, pelo visitante. Desenhada por ele e por ele concebida. Do Porto de Luanda à rua rainha ginga à mutamba, ao bairro Alvalade, Miramar, à marginal, ao Largo Serpa Pinto, a cidade é dele. Do colono.
São Paolo de Assunção de Luanda
Luanda vê-se. Ouve-se. Lê-se de fora para dentro. Mais de quatrocentos anos de ocupação portuguesa e a meio tantos acontecimentos. São Paolo de Assunção de Luanda, como então foi batizada, é apenas e só Luanda. E que Luanda é esta?
É marginal. É húmida. É informal. É umbundu, kimbundu… É calão… É kuduro. É tristeza disfarçada. É alegria e alegoria. Feitiço e misticismo.
Os portugueses ainda choram saudosos pela sua Luanda. A tal que existiu até aos anos setenta, altura em a Independência se oferece ao país, depois de vários anos de guerrilhas.
Luanda era apenas e só pensada para menos de um milhão de pessoas. Era ela sapatos de salto alto, festas de arromba e gelados “Baleizão”.
Quem poderia adivinhar o que a guerra civil faria a esta cidade. Poucos adivinhariam…
Quando Jonas Savimbi e José Eduardo dos Santos, ambos líderes dos maiores partidos nacionais, lutam pela cadeira do poder, a cidade recentemente libertada é caminho certo e seguro para todos de todos os lados.
Chegam os do sul. Do Leste. Do Centro. Do Norte. E Luanda não se esconde. Recebe e instala. Arruma e segura. Aperta e encaixa. Emprega. Todos de todos os lados encontram vida em Luanda. E a cidade estica… estica. E a guerra alastra-se. A civil. Aquela entre o MPLA e a UNITA que se expandiu e que crucificou o povo por praticamente três décadas. Luanda, tal como uma mãe grande, deu a mão. E acolheu.
A Luanda que se faz e refaz
Adivinhem quem ela é agora? Agora é única. Tal como sempre foi. Maltratada pelo tempo. Inflamada. Perturbada pelo ruído. Cansada e esgotada pelas noites mal dormidas.
Mas viva. Viva que se farta. Com uma geração que corre com pressa de chegar a um destino melhor.
É a Luanda que cantou André Mingas e que inspirou outros tantos compositores, escritores e pintores. É a Luanda que se faz e refaz. Sem um fim à vista…e que não deixa adivinhar quem é e quem será!..
E para o turista que chega, ela tem tantos e tantos lugares. Tal como outra qualquer cidade africana; mas atenção porque esta não é uma qualquer, ela é aparentemente confusão. Toda a informalidade que entra adentro do olhar do turista é África a viver.
Para além das primeiras imagens que ficam, as tais do caos, existe uma mão cheia de lugares para ver, fotografar e ficar à conversa. Sim, porque o povo é de graças fáceis e de conversas leves. Miradouro da Lua é um destes lugares. Todo o horizonte à vista numa paisagem lunar, feita de falésias várias, que um dia destes a curto prazo deverá receber um brinquedo produzido no estrangeiro para os turistas desceram à maior velocidade possível até ao areal. O Infotur, Instituto do Fomento do Turismo de Angola, tem feito por isso. São milhões de pessoas ao ano neste lugar. A maioria nacionais. Porque o turismo ainda não chega para se falar em turismo. A cidade é conhecida pelos seus negócios e muito menos pelos seus encantos naturais.
Tudo o resto está cá e não desaponta ninguém
Mas seguimos caminho à boleia do visitante, o tal estrangeiro que agora nem sequer paga visto para pisar o país. Sim, porque este ano também o governo decidiu abrir portas ao mundo e dar entrada rápida e gratuita a pelo menos noventa nacionalidades. Portugal é um destes países. O rei Cuanza, majestade maior do reino dos rios angolanos, é outra fonte de prazer e de paz para qualquer turista. Ele que tem a sua nascente na província centro de Angola, o Bié, passa imponente por Luanda e aqui termina o seu curso quando beija o Oceano Atlântico na Barra do Cuanza, local onde também existe alguma oferta hoteleira e pesca desportiva. Os mangais que estreitam o rio e os macacos que se aproximam atrevidos são alguns dos seus encantos.
Não é de deixar de parte o Parque Nacional da Quiçama, onde a vida selvagem se multiplica graças à importação de alguns dos animais, alguns deles vindos da África do Sul e do Botswana. Zebras, gnus, diversas aves… Elefantes até.
O parque não é só fauna, também é caminho do rio Cuanza e permite em embarcações locais passear por entre o verde. Com todo o respeito que um passeio destes pede porque a vida no rio pode ser ameaçadora.
Lagoas, savana, a Quiçama é um santuário às portas da cidade que sugere mesmo uma visita. Faltam as infraestruturas, faltam muitas das comodidades que se desejam, mas só e apenas isto… Porque tudo o resto está cá e não desaponta ninguém. Nem ao turista mais viajado.
Cidade senhora dona de muitas promessas de riquezas fáceis
Luanda guarda ainda na sua memória e na sua história o Museu da Escravatura, casa de passagem de dor, local de baptismo de homens, mulheres e crianças que daqui foram mar adentro. Anos de choro que se lembram em muitas figuras retratadas, em muitos dizeres e em muitos objetos. Para ver e para ficar. E para sentir.
O museu, plantado no Morro da Cruz, deixa ver a ilha do “Mussulo”. É península, isso sim. Mas não se livra de andar de boca em boca pelo país afora como se de uma ilha se tratasse. É lugar de hotéis, de águas rasas, de alguns projetos de arquitetura onde se gastaram balúrdios sem ganhos reais para a chamada ilha.
Ora bem, Luanda nunca foi, nem menos é só e apenas a tal cidade histórica maltratada pelas três décadas de guerra civil. Visto bem, a cidade tem tantos trilhos… para além de tudo o resto.
Para ver resta ainda a Fortaleza de São Miguel, o Palácio de Ferro, o Museu de História Natural…
Por entre lugares, caminhos e atalhos há uma marginal que continua a fazer o gosto à maioria dos visitantes…
Na primeira linha de construção, na segunda e até na terceira, os edifícios altos com materiais nobres e modernos a fazer lembrar os países mais desenvolvidos, chegaram com a paz em 2002. Quando o, então, presidente da república, José Eduardo dos Santos anunciava que a cidade era um enorme canteiro de obras, prenúncio de um tempo áureo. Não se enganou.
A cidade viveu tempos de paz económica com um crescimento de dois dígitos e foi destino do maior número de investidores do mundo. Não era barata. Nem sossegada. Nem meiga. Mas era senhora dona de muitas promessas de riquezas fáceis.
Os edifícios majestosos que hoje pintam a marginal e que a iluminam quando a noite cai são mais um dos feitos que se fizeram após a paz. Mais um refazer da cidade que nunca se adivinha quem é, nem quem será…
É Luanda, cantou André Mingas. Ponto final parágrafo!