“Sempre gostei muito do poema
The True-Born Englishman,
que satiriza as diversas origens étnicas da Grã-Bretanha”
Aos 78 anos, Bernard Cornwell é um dos escritores britânicos mais importantes da actualidade. Com mais de 40 obras publicadas e traduzidas para mais de 16 línguas, é internacionalmente reconhecido destacando-se em Portugal pela narração ficcionada do momento em que Inglaterra surge como nação após a reunião dos reinos anglo-saxões iniciada no século IX por Alfred, o Grande
Texto Carla Santos Vieira Fotos Christopher Seufert Photography e D.R.
Nascido em Londres em plena Segunda Guerra Mundial, Cornwell foi educado por uma família adoptiva peculiarmente diferente da sua natureza pessoal. Ainda muito jovem descobriria sozinho o interesse por assuntos militares e cursaria História, outra paixão. Um dia seriam estes os dois importantes pilares que viriam a constituir a base de uma carreira fulgurante como escritor nos EUA depois de trabalhar na BBC. Em Portugal será mais conhecido como o autor de As Crónicas Saxónicas, a obra que inspirou a série protagonizada por Alexander Dreymon, Emily Cox e David Dawson, The Last Kingdom, da Netflix. A propósito do jubileu de platina de Elizabeth II, a Travel & Safaris recua no tempo e chega à génese da soberania inglesa enquanto país encontrando um narrador destes dias em tudo diferente. Em entrevista, Cornwell revela uma simplicidade desarmante, um sentido de humor muitíssimo apurado e um profundo conhecimento de História. Ao aprofundarmos o seu percurso e os seus interesses descobrimos que, neste caso particular, parece que a própria História o seguiu de perto chamando-o às suas origens, já que com mais de 50 anos o escritor descobriu que os seus antepassados estiveram intimamente ligados ao passado militar britânico e ao nascimento daquele país.
Quando era ainda um rapaz costumava visitar o porto e observar os pescadores. Foi com eles que aprendeu a velejar?
Não a velejar mas a desfrutar da experiência. Era muito novo, a Segunda Guerra Mundial tinha terminado há pouco tempo e o combustível era caro e escasso, portanto os barcos pesqueiros recorriam à utilização de velas sempre que conseguiam.
Este gosto que tem por vela dá a ideia que desde muito cedo sentiu aquela vontade de viajar e de conhecer novas paragens e novos povos. Terei razão?
Pode dizer-se que sim!
O que aconteceu para ser educado por outra família apesar de os seus pais biológicos estarem vivos? Foi a Segunda Guerra Mundial que concorreu para que assim tivesse sido? Porque perderam o contacto?
A minha mãe biológica estava na WRAF (Womens Royal Air Force) e a lei proibia estas mulheres de engravidar, pelo que ficou em apuros quando eu nasci em virtude de uma breve ligação com um oficial da Royal Canadian Air Force. Ela queria assumir a sua maternidade mas os pais recusaram-se sequer a admitir a ideia, portanto ao nascer fui dado para adopção. Só voltei a encontrá-la passados mais de cinquenta anos!
Porque é que adoptou o apelido da sua mãe biológica e não o do seu pai, Oughtred?
Cornwell soa melhor! É tão simples como isso. Além de tudo, Cornwell era o nome que figurava na minha certidão de nascimento (antes de ser adoptado).
O nome do seu antepassado, Uhtred, está de algum modo relacionado com o apelido do seu pai (Oughtred)?
Muito, sim – a semelhança não é coincidência; o nome simplesmente derivou ao longo dos séculos para Oughtred.
Pode descrever-nos o processo de pesquisa da história da família do seu pai, que vai até Eider, the Flamebearer (Eider, o Portador do Fogo), o saxão que tomou o Castelo de Bamburgh no século VI?
Não fui eu quem fez essa pesquisa – quando conheci o meu pai biológico na Colúmbia Britânica ele deu-me uma cópia da árvore genealógica da família onde constavam todas essas informações!
De que modo se identifica com o seu passado?
Estou muito ciente da nossa ligação ao Castelo de Bamburgh e em casa tenho duas pinturas da fortaleza, mas trata-se de uma ligação puramente romântica.
Ao escrever acerca do passado de Inglaterra tomou consciência que os próprios ingleses não sabiam muito acerca dos primórdios da sua nação. Como se explica isto?
Suponho que em qualquer país que tenha uma história longa haverá um ponto de partida e ao longo dos anos os ingleses parecem ter vindo a adoptar 1066 como momento inicial. Portanto quando somos pequenos começamos a aprender História tendo a Conquista Normanda como ponto de partida. As eras anteriores não são completamente ignoradas, mas são de algum modo encaradas como menos relevantes e por isso recebem muito menos atenção do que as outras.
Sendo descendentes de celtas, bretões, saxões, anglos, dinamarqueses, noruegueses e islandeses e portanto resultantes de uma mistura multicultural, como poderemos encarar a visão, digamos que um pouco “snob”, que os britânicos têm de si próprios? No final de contas não serão eles (e todos nós) o resultado de diversas rotas de migração? Será que podemos com alguma justiça falar de conceitos fronteiriços?
O “snobismo” que refere está mais relacionado com a História recente, especificamente com as vitórias sobre os franceses aquando das Guerras Revolucionária e Napoleónica – e tem toda a razão quando refere a natureza multiétnica dos britânicos. Sempre gostei muito do poema The True-Born Englishman, de Daniel Defoe, que satiriza as diversas origens étnicas da Grã-Bretanha. Se esta realidade provoca uma mitigação de fronteiras, não sei. O Reino Unido de certo modo erradicou as fronteiras dentro da Grã-Bretanha, mas o tribalismo prevalece e suspeito que há-se sempre prevalecer.
Como é que encara o mito arturiano?
Vejo-o como uma memória de uma “era-dourada”. Difundiu-se nos anos que sucederam a conquista da Britânia pelos saxões nos séculos VI, VII e VIII e recordava o tempo em que um grande líder britânico resistira aos invasores e proporcionara paz a muitas daquelas terras. Com o passar do tempo estas histórias alteraram-se e transformaram-se num verdadeiro mito, tendo-se eliminado a ligação que pudessem efectivamente ter com a História.
Regressando a Alfred, o Grande, o que pensa dele? Considera haver alguma ligação ou semelhança entre ele e os reis e rainhas que governaram a Inglaterra?
Admiro-o, embora duvide que tivesse gostado dele. Foi sem dúvida um grande homem e, acima de tudo, era de uma inteligência suprema, aplicando-a à crise que o seu país enfrentava – a invasão dinamarquesa, à qual resistiu com sucesso. Quanto aos monarcas mais recentes, não podemos dizer que algum destes tenha enfrentado problemas tão sérios como Alfred e penso que em termos de inteligência só Elizabeth I se terá aproximado dele.
Como analisa a realeza britânica actual que celebra agora o jubileu de platina?
Sou monárquico e portanto aprovo a monarquia! Tenho grande admiração pela Rainha e sinto muito respeito pela sua família. Também admiro muito a Princesa Real (Anne), que tive recentemente a honra de conhecer. Achei-a encantadora e intelectualmente estimulante.
Como vê o antigo povo nórdico (viking) que veio para Northumberland, Mercia e East Anglia? Como é que explica a sua mudança ao longo dos séculos, já que acabou por tornar-se um dos povos mais pacíficos da Europa?
Na era de Alfred e dos seus sucessores imediatos, os dinamarqueses eram temidos com razão. Eram extremamente implacáveis e impiedosos e eram guerreiros muito eficazes, mas acabaram por ser assimilados pelos países que ocuparam. Quanto à sua história mais recente, não sei o suficiente, embora suspeite que depois do envolvimento da Suécia na Guerra dos Trinta Anos e da experiência norueguesa na Segunda Guerra Mundial tenham aprendido a sensatez de evitar conflitos. A Rússia poderá muito bem alterar isto e vir a despertar um inimigo formidável.
Considera que no passado os governantes e também os povos eram mais corajosos e mais fiéis aos seus princípios e valores?
Duvido que os povos fossem mais corajosos! Suspeito que a coragem é uma constante humana. Na Ucrânia vemos um povo que não só é corajoso como está disposto a lutar por um princípio. Não considero que as pessoas mudem, acho que o que se altera são os acontecimentos.
Certamente terá consciência que voltando atrás, por exemplo na História de Inglaterra, e referindo antigos territórios como Wessex, Mercia, East Anglia e Northumberland está a despertar a curiosidade da opinião pública e também a passar-lhe conhecimentos geográficos e a promover o seu desejo de conhecer estas terras e de viajar…
As pessoas têm certamente um desejo de ver os lugares onde a História viveu momentos decisivos – é isso que explica os milhões de pessoas que todos os anos visitam lugares como Waterloo ou Yorktown. O desejo de viajar é inato, parece-me, e parte dele resulta da nossa vontade de obtermos prazer.
Acha importante viajarmos? Acredita que ao fazê-lo estamos também a alterar a nossa mentalidade?
Adoro viajar e espero que as viagens alarguem a nossa visão e fortaleçam a nossa tolerância.
Já pensou escrever acerca de Portugal ou acerca de um episódio da História de Portugal?
Já escrevi sobre Portugal nos meus romances acerca das Guerras Napoleónicas e gostei sempre das viagens de pesquisa que fiz ao país, tentando reflectir este facto nos livros. O exército português que lutou entre 1809 e 1815 representava uma força extremamente eficaz. Wellington desejava contar com a presença das tropas portuguesas em Waterloo (embora, sem que fosse sua responsabilidade), as mesmas tivessem chegado demasiado tarde.
O que sente ao visitar o Castelo de Bamburgh e ao recordar que este pertenceu à sua família até 1016?
Sinto uma familiaridade inexplicável! Antes de descobrir os meus antepassados, a minha mulher e eu passámos umas férias na costa da Northumbria e adorámos a visita que fizemos ao Castelo de Bamburgh. Na verdade gostámos tanto que no ano seguinte voltámos e mais tarde descobri que descendia de uma família que no passado tinha sido sua proprietária. Quando contei isto ao actual dono do Castelo de Bamburgh sugerindo que talvez pudesse devolver-mo, ele convidou-me a dar uma vista de olhos às contas de electricidade do castelo! Portanto a conversa ficou logo por ali…
Em As Crónicas Saxónicas, a unificação de Inglaterra é tornada possível graças à ajuda de um saxão que foi educado por dinamarqueses, o que é deveras irónico. Qual foi a sua intenção ao escrever a história com este contorno? O seu antepassado Uhtred de Bebbamburg foi educado por vikings?
Tenho a certeza que Uhtred não foi educado por vikings. O que escrevi é pura ficção. Estabeleci uma ligação entre ele e os dinamarqueses para criar tensão entre Uhtred e Alfred – uma relação de amor-ódio, mas não passa de ficção!
Acredita que a Inglaterra teria existido se os vikings não tivessem invadido aquele território?
Suspeito que sim. A ambição de Alfred era unir todos os reinos que falavam inglês (e eram cristãos) e foi o que aconteceu. Suspeito que um daqueles reinos acabaria por assimilar os outros.
Que lugares aconselharia uma pessoa visitar se quisesse encontrar a verdadeira alma inglesa?
Dir-lhe-ia para passar um dia de Verão num jogo de críquete e a noite num bar que servisse boa cerveja.
Durante um certo período da sua vida viveu na Irlanda do Norte. Considera os ingleses e os irlandeses muito diferentes entre si? Na sua opinião o que os terá tornado tão distintos?
Adoro a Irlanda e os irlandeses e sinto um carinho especial por Belfast e pelo seu povo, que tem uma sagacidade vibrante, como também acontece em Glasgow ou em Liverpool. São diferentes na medida em que uma história lamentável os tornou diferentes, mas os irlandeses têm talento para o perdão, o que não tenho a certeza que os ingleses tenham, mas nunca fui hostilizado na Irlanda e sinto que recentemente tem vindo a crescer uma verdadeira amizade entre os dois países.
O que sente ao aperceber-se que tantas pessoas reconhecem o seu talento e que também aprendem História apesar de as suas obras serem ficcionais?
Sinto-me aliviado quando acabo um livro e depois quando começo a escrever outro vou-me sentindo cada vez mais inadequado! Sou muitíssimo grato por tantas pessoas gostarem dos meus livros mas nunca tomo o sucesso como algo garantido.