“Os países mágicos tornaram-se perigosos e a história da humanidade está constantemente a ser reescrita”
Há meio século largou uma carreira de sucesso no mundo da publicidade, montou-se numa Kawasaki 100 cm3 e acabou por tornar-se a primeira mulher de sempre a dar a volta ao Mundo neste veículo, fazendo-o a solo. Anne-France Dautheville é sem dúvida uma personalidade ímpar e uma viajante única
Texto Carla Santos Vieira Fotos Anne-France Dautheville e D.R.
Estávamos nos anos 70. A sede de liberdade e de experiências roubaram-na ao mundo da publicidade, devolvendo-a à sua própria natureza, de raízes mais espontâneas, determinadas e muito independentes. Sempre preferiu viajar sozinha, embora não dispense a presença dos amigos na sua vida. Atravessou a Austrália, apaixonou-se pelas gentes do Afeganistão, explorou a América Latina e não sabe dizer quantos países terá já visitado. Desde a primeira viagem tornou-se escritora, narrando impressões sobre as suas aventuras, mas aos cinco anos já sabia que as letras estariam sempre presentes na sua vida. Trabalhou como freelancer em jornalismo e mais tarde descobriu o maravilhoso mundo das plantas, dedicando-se-lhe bastante. Prestes a completar 80 anos, a aventureira parisiense narra à Travel & Safaris as viagens de outros tempos.
Como nasceu o seu desejo de viajar pelo Mundo? Que idade tinha?
Tinha 28 anos e uma carreira de sucesso como redatora publicitária. Perguntei-me se ia dedicar a minha vida a ganhar dinheiro, a promover iogurtes, detergentes em pó ou um clube de férias. Se ser feliz 11 meses por ano, e muito feliz no 12º mês, quando ia dar um passeio de mota, era uma vida coerente e plena…
Porquê de mota e porquê sozinha?
De mota: era demasiado tonta para ter carta de condução! Sozinha: a minha primeira viagem foi o primeiro raid Orion, de Paris a Ispahan. Descobri que não gostava de grupos, sou uma solitária. Uma solitária que não conseguiria viver sem amigos, mas que precisa de estar consigo própria. E com os meus gatos.
Começou por viajar de França para o Irão. Porquê este destino?
Foi um raid organizado. Eu era a única mulher a conduzir, os outros eram passageiros. Partimos com 105 pessoas – penso eu – e chegámos com 92. Onze decidiram seguir para o Afeganistão e eu avancei; cinco para o Paquistão e eu avancei e, no regresso, voltei sozinha de Istambul.
Como é que a sua família reagiu à sua ideia de partir sozinha para a estrada com o projeto de dar a volta ao Mundo?
A partir do momento em que deixei os meus pais, com 21 anos, a idade da maioridade, considerei que a minha vida me pertencia. Se tivesse seguido as leis da minha boa educação, ter-me-ia casado, tido um marido, vinte e cinco filhos, cozinhado, limpo, sem palavrões e só com certezas, sem rir nem sonhar!
Era uma jovem muito diferente das outras no final dos anos 60 e início dos anos 70… Diria que tinha um espírito aventureiro?
Sem dúvida, nessa altura era assim. O Mundo estava a abrir-se e havia toda uma geração que partia para o Oriente; era o tempo dos mochileiros que viajavam à boleia… Tenho, sem dúvida, um gene de viajante; os antepassados do meu pai eram vikings; eu andava de moto como eles andavam de barco.
E como é que foi partir? Partir sem saber ao certo o que iria encontrar? Teve medo? O que é que a levou a seguir em frente?
Não aguentava mais a minha vida de jovem executiva de sucesso e tive a sorte de viver numa época em que a sociedade permitia que as pessoas questionassem as coisas. A certeza do que iria encontrar? Qual seria, nesse caso, o objetivo de viajar? Viajar é acumular surpresas, é estar sempre a ser surpreendido, é abalar as certezas, é alargar o olhar. É viver com letras maiúsculas em todo o lado. Medo? Sempre antes de partir. Era apenas o medo de perder. Depois, quando se está no meio da acção, a questão já não se coloca. Se tivesse desistido pelo caminho não teria um livro para escrever nem reportagens para oferecer. Escrever era tão importante como viajar, primeiro para comer e depois, sobretudo, para compreender.
Como foi exatamente a sua viagem em torno do Mundo?
Comecei no Canadá e fui até ao Alasca e depois ao Japão. Regressei pela Índia, Paquistão, Afeganistão, que adorei, e depois Irão, Turquia, Bulgária, Jugoslávia, Áustria, Alemanha e França.
Quantos países já visitou? Ainda há algum na lista “a conhecer”?
Não faço ideia! A Austrália conta como um país, é 14 vezes maior do que a França. A Jugoslávia era um só país, agora é Montenegro, Croácia, etc… Gostaria de ter ido à Mongólia, ao Tibete; gostava de fazer a viagem de Michel Strogoff… O bloco soviético proibiu as viagens…
Como é que a escrita entrou na sua vida? E como é que se estabeleceu como autora de livros de viagens?
Aprendi a ler aos 5 anos; decidi logo que ia escrever e, quando me deram um atlas, decidi que ia viajar pelo Amazonas. Mais tarde, decidi que casaria com Burt Lancaster, mas não resultou.
Também trabalhou como jornalista, não foi?
Como freelancer. O principal era escrever os meus livros. Assim que regressei comecei por escrever sobre as minhas viagens para recuperar o dinheiro que tinha gasto. Depois escrevi o meu livro. E depois lá fui eu outra vez. Em 81, quando Mitterrand instituiu o carnet de change, que proibia as pessoas de saírem de França com mais de cinco mil francos por ano, fiquei impedida de viajar, a não ser que fizesse batota. Escrevi romances e fiz cada vez mais reportagens sobre os mais variados assuntos: turismo, animais, plantas, vinhos, etc., etc.
Quais são as principais diferenças entre o Mundo de então e o de hoje?
Tudo mudou com a invasão russa do Afeganistão e a Guerra do Golfo. Estes países que eu tanto amava foram divididos, depois caiu o Muro de Berlim e o Mundo ficou de pernas para o ar. A Internet abriu uma avenida de cultura, de intercâmbio e, por vezes, de estupidez. Neste momento, todos os mapas do Mundo estão a ser baralhados com os Brics (acrónimo para a organização intergovernamental composta pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), as guerras a rebentar por todo o lado, as alterações climáticas… Ainda bem que estou velha!
E as pessoas?
Há cinco anos que sou convidada por clubes, mediatecas, livrarias e cidades de toda a França e, por vezes, da Bélgica. Encontro pessoas da minha geração, mas também muitas pessoas na casa dos trinta anos. São pessoas fantásticas, que já têm na cabeça o mundo de amanhã, com respeito pelos outros, pela diferença, com uma grande curiosidade, com tudo o que eu adoro.
Dos lugares que visitou, qual é que teve maior impacto sobre si?
Aqueles de que mais gostei foram o Afeganistão, a Austrália e o Peru.
E qual foi o que mais o seduziu?
O único onde poderia viver como mulher independente, onde teria encontrado prazer em viver de um modo semelhante ao que a França me proporciona: a Austrália.
Gosta de Paris?
Claro que sim! Deixei-a quando mudei de vida, mas nunca me afastei dela. Hoje em dia, vivo feliz numa pequena cidade a 40 minutos de comboio da Gare de l’Est; Paris é onde está a maior parte dos meus amigos, onde está a minha editora, onde estão as lojas, onde há especialidades de todo o Mundo, onde está tudo. E, para além disso, a cidade é sempre bonita.
O que é que recorda da sua experiência no estrangeiro?
Que fui moldada por um universo muito específico, o do Ocidente. A minha consciência, a do indivíduo, sozinho entre milhares de milhões de seres humanos, entre milhões de anos, é uma criação ocidental. No Oriente, quando dizemos eu, significa eu + a minha família + a minha religião + o meu clã, etc., etc… O milagre de viajar é podermos viver intercâmbios de uma qualidade tremenda porque podemos medir as diferenças para nos reconhecermos como seres humanos, e isso é milagroso porque tudo nos devia separar. Comunicamos através das nossas raízes, as raízes da humanidade.
Quando voltou era uma mulher diferente?
Cada minuto que passa faz de nós outras pessoas que continuam a ser nós. Até as pedras mudam!
O facto de ser mulher dificultou as suas viagens?
Pelo contrário; uma mulher sozinha, num país que não está em guerra ou em crise, é respeitada e protegida. Conhece a Mélusine Mallender? É uns bons 40 anos mais nova do que eu; fez viagens extraordinárias sozinha na sua moto em países que me estavam fechados, mas que entretanto se abriram. Tal como eu, ela conheceu a humanidade com respeito, de ambos os lados. Recomendo a leitura do seu livro Les Chemins de la Liberté, uma maravilha.
Como é que olhavam para si? Na altura, mesmo na Europa, era muito raro ver uma mulher tão ousada…
As pessoas achavam que era uma ousadia por ir sozinha para o Afeganistão, como se os afegãos fossem todos selvagens… Eu adorava aquele país, adorava aquelas pessoas. sentiam-se orgulhosas de si próprias, orgulhosas por acolherem uma mulher que confiava na sua honra. Cada país tem os seus códigos, as suas permissões e as suas proibições; se mostrarmos que os respeitamos, se não julgarmos e se estivermos bem-dispostos, está tudo bem!
Considera que o Mundo é hoje o mesmo, mais ou menos perigoso?
A Internet mudou as regras do jogo. Os países mágicos tornaram-se perigosos e a história da humanidade está constantemente a ser reescrita, umas vezes pela inteligência e pela honra, outras vezes pela guerra e pelo confinamento do medo. É como se a violência se tivesse deslocado de um sítio para outro.
Que destino voltaria a visitar sem pestanejar?
Adoraria voltar às Termas do Rio Liard, no Yukon canadiano. Voltar a Ochre Pits, um desfiladeiro rochoso no trilho de Glen Helen Gorge, na Austrália. Gostaria de ver o Calejon de Huaylas no Peru e a cidade velha de Tallinn na Estónia, e Monument Valley no Colorado guiado por Carl Phillips, um navajo, e o Loch Ness na Escócia. E o planalto de Larzac ou o circo de Troumousse, em França. A Route de la Trace, de noite, na Martinica, e Zelve na Turquia, e… em suma: o Mundo!
Continua fascinada por motos?
Não sou mais fascinada por uma moto do que Thierry Marx (chef francês) é por uma panela de pressão. O que me interessa é o que faço com ela, e isso é magia!
Como é que se sente ao “conquistar o Mundo” em duas rodas?
Viajar de moto é viver um diálogo permanente entre o corpo e o Mundo: a pele recebe o frio e o calor, o nariz inala todos os cheiros, de terra, de plantas, o cheiro das cidades e das aldeias; os olhos enchem-se de cores, de formas. O corpo vive a estrada, os solavancos nas pernas, os ombros, o vento a pressionar a cabeça, o tronco a garantir o equilíbrio, as pernas a erguer o corpo quando a pista exige que respondamos a cada obstáculo inclinando-se um pouco para um lado ou para o outro, etc. E, então, quando nos encontramos entre os humanos, surpreendemos, divertimos e interessamos porque não somos viajantes normais; muito menos quando somos uma menina sozinha… Então discutimos e ao fazê-lo reconhecemo-nos, apesar de todas as diferenças, como humanos. É mágico.
Como é que o mundo das plantas entrou na sua vida?
Tinha um pequeno jardim em frente à minha casa. Procurei informação em livros, revistas e na Internet e, quanto mais lia, mais me fascinava com o diálogo das plantas com a terra, a água, a luz e o tempo. Quando soube tudo o que uma planta pode inventar para viver e reproduzir-se, apesar de não ter cérebro, o meu fascínio multiplicou-se por mil. A história dos seres humanos pode ser contada simplesmente pela forma como as plantas se movem; o inverso também é verdadeiro: veja-se a crise da batata, que enviou milhares de irlandeses para a América…
Como vê as alterações climáticas que estão a ocorrer? Como viajante, penso que há-de ter uma forte opinião…
Nos anos 60 havia um ecologista que ninguém levava a sério: chamava-se René Dumont e usava uma camisola vermelha. Dizia que a Terra não tinha sido feita para suportar mil milhões de crianças chinesas que queriam puxar o autoclismo cinco vezes por dia. Talvez o nosso papel na história da Terra seja matar tudo para que ela possa reinventar-se pela quarta vez. “Arrumemos a casa” enquanto é tempo!