Sob a brisa matinal africana, a carrinha da Across aguarda impassível no exterior do aeroporto Kenyatta de Nairobi.
– Jambo(Olá)! – Cumprimento.
– Karibu (Bem-vinda)!– Respondem-me.
Texto: Maria João Castro Fotos: Pedro Sousa Dias
O veículo saracoteia-se, saindo em direção a Navasha eao Rift Valley. A terra, invadida pelo pó das planícies de cores secas desenovela-se ao sabor do vento que, assobiando, remoinha a natureza. Ao longe, em fundo de aguarela ressequida pelo sol, a cratera de um vulcão vigia a paisagem. O asfalto vai estreitando, esburacado. Aviatura galga o piso sacudindo-se como se fosse uma máquina voadora, deixando um rasto de partículas que plana no ar. Pequenos arbustos e acácias servem de cenário a babuínos, zebras e vacas, que anulam a monocromia da paisagem.
Horas depois chegamos ao Parque Nacional do Lago Nakuru para o primeiro de vários safaris. Depois de um breve descanso e de uma refeição ligeira, a Hiace rola juntamente com outras de diferentes operadores turísticos. Logo que o trilho bifurca, o amontoado de veículos espalha-se pelo parque, dispersando-se na vastidão da terra.
Um par de símios, à aproximação da carrinha, retira-se suspenso pelos braços enquanto uma girafa atravessa o trilho, majestosa. Instantes depois, o guia chama a atenção para um leopardo a dormir sobre o galho de uma acácia, soberbo na sua majestade felina.
A tarde vai descendo preguiçosa, ao ritmo da natureza que nos marca encontro com zebras, impalas, búfalos, elefantes e aves de rapina. O céu, carregado de nuvens cinzentas, ameaça desaguar. Este parque possui a maior concentração de rinocerontes de África e é precisamente para admirarmos três destes exemplares que paramos mais uma vez: duas fêmeas e uma cria observam-nos, a curta distância. Pouco depois, voltam costas, afastando-se pesados, com vagar.
Dirigimo-nos para o lago Nakuru, um dos paraísos ornitológicos na Terra, conhecido pela concentração de flamingos rosados e como porto de abrigo de um terço da população mundial. O filme África Minha ajudou a tornar célebre este lugar, abrindo com a imagem de uma avioneta que sobrevoa o lago. Não chego aqui de bimotor, mas isso é de somenos importância. Não é por isso que a visão deixa de ser grandiosa e inusitada. Uma mancha rosácea levita sobre a superfície espelhada, refletindo uma nuvem de aves cor-de-rosa; outras passeiam-se no alto das suas pernas, numa elegância aristocrata. Um marabu mal-humorado risca a margem. Nesse preciso momento, em que o cheiro a terra e o tom cinzento-escuro das últimas nuvens no céu abraça o entardecer, gravo a imagem em tons de rosa pálido do conjunto e respiro fundo, como que a prolongar o instante diáfano.
À medida que a escuridão se aproxima e se cumpre o caminho para o lodge, o parque vai-se fechando para dar lugar às histórias nocturnas de uma África imensa. Na imprecisão das pálpebras que já pesam, oiço a água que desliza sobre as pedras de um riacho. Ciciam sons desconhecidos. Um rugido de leão, seguido de um piar estridente, rompe a mudez da noite. Toda a paisagem está agora muda, pronta a deixar a imaginação enovelar-se de sonhos que remetem para a época dos grandes exploradores e das expediçõesàs entranhas do continente africano. Livinstone, Stanley, Karen Blixen…
Sob o ar frio da nova manhã, parto com destino a Masai Mara, um dos parques mais conhecidos do Quénia e prolongamento das planícies do Serengeti da Tanzânia. Com mais de três milhões de animais distribuídos por mil e quinhentos quilómetros quadrados, é um dos lugares de eleição para observar os Big Five: o leopardo, o rinoceronte, o búfalo, o leão e o elefante.
Na planície, as acácias chapéu-de-chuva crescem em camadas horizontais. Zebras e girafas pincelam de cor os arbustos rarefeitos que emolduram o trilho que atravessamos. Passamos Narok Town. A terra seca evidencia um masai que caminha atravessando o capim: assemelha-se ao Homem a Andar, a escultura de Alberto Giacometti, mas este com uma vestimenta escarlate que ondula, esguia, sem tocar o chão.
O reino animal desfila em slow motion: águias, avestruzes, impalas, zebras, elefantes, búfalos e gnus rasgam o céu e a terra, indiferentes à nossa passagem. Os guinchos dos macacos fazem levantar os pescoços elegantes das impalas. As hastes de um veado baloiçam ao ritmo com que rumina a erva. Rinocerontes pretos cruzam o trilho, obrigando-nos a parar. Da terra desprende-se um odor hostil. As carcaças de animais, e das quais resta apenas o esqueleto, espalham-se pelo território, conferindo ao solo ressequido a dinâmica de uma exposição de escultura. Adiante, um par de abrutes sobrevoa em círculos a copa de uma árvore.Trilhamos um percurso com pegadas secas de paquidermes e excrementos variados. As nuvens viajam com o vento que as embala em direção às montanhas e que embate contra as encostas. Manadas de gnus escurecem o mato, agitando-o.Girafas, desengonçadas no seu peso-pluma, atravessam os atalhos, galgando a planície do alto dos pescoços esguios. Ao fundo, numerosos marabus caminham desajeitados. Avistam-se manadas de zebras, gazelas e avestruzes que, silenciosas, percorrem a savana amarelecida de outono.
Paramos a viatura a um metro de uma chita. Ela ruge, espreguiçando-se. Mais à frente, num charco, algo enorme revolve as águas enlameadas. Primeiro emergem uns olhos gigantes, depois uma bocarra avermelhada abre-se, colossal, trazendo junto a si um par de hipopótamos. Não muito longe, uma leoa brincalhona dá variadas cambalhotas, esfregando-se na terra. Uma ave volteia no céu, outra eriça-se e mergulha o bico na terra dura. Atrás das colinas, reboa surdamente um trovão.
Ao longe, a chuva cai. Sopra uma rabanada de vento, que faz redemoinhar a terra, desfocando-a. A poeira forma torvelinhos espiralados e corre pela erva, levando consigo palhas e folhas que revoluteiam para lá do horizonte. Um delgado véu de nuvens distende-se e engrossa. O ar torna-se carrancudo. De repente, desaba uma valente tempestade e a terra converte-se num mar de lama. É nesse instante que as inauditas combinações e cambiantes, do planalto, formam uma dança selvagem e negra. Os animais, indiferentes ao aguaceiro torrencial, movem-se silenciosos. Ao fundo, e numa espécie de nevoeiro negro rente ao chão, centenas de gnus recortam-se no dilúvio. Os relâmpagos iluminam a montanha e o choro dos deuses africanos dura o tempo de um lamento. Pouco depois, a trovoada diminui e cessa, tão repentinamente como se iniciou. Sobra um inebriante cheiro a terra molhada. A nitidez da paisagem aperfeiçoa-se e o ar apresenta-se transparente, puro e tépido.
Pela vereda, uma série de árvores-catos solitárias descontinuam a uniformidade do horizonte, povoando-o de formas esguias que apontam para o céu.
São sete da tarde, é altura de recolher. Deixo para trás uma paisagem áspera, crestada pelo Sol e regada pela tempestade.
A última refeição do dia incita ao convívio e à inconfidência. A conversa desenvolve-se junto ao crepitar do lume e sob um céu estrelado, únicas testemunhas de um dia irrepetível.
Retiro-me para uma das confortáveis tendas do Sarova Mara Tented Lodge e, sem acender a luz, deito-me sobre a cama ouvindo cada vez mais longe o ruído da savana, até que ele se torna num murmúrio, extinguindo-se no sono.
A carrinha arranca aos solavancos e eu atento nas palavras de Sophia de Mello Breyner: Viajar é olhar.
Sob os auspícios de uma nova aurora os trilhos do parque Masai Mara abre-se a novas descobertas. Em redor das montanhas reina um silêncio que revibra nas ondas de calor sobre o capim ressequido. No céu, balões de ar quente mostram a planície a turistas afortunados.
Há tempo de visitar uma aldeia masai e apreender o seu modo de vida. Cento e cinquenta mil masais distribuem-se por quatro milhões de hectares, entre a Tanzânia e o Quénia: um povo, dois países, ou não estivéssemos em África, onde as fronteiras servem apenas para enfeitar os mapas. Envoltos na tradicional shuka – a capa vermelha – alguns masais encontram-se reunidos à volta de uma acácia, perto da carrinha da Across. Observam e aguardam na sua pose de escultura longilínea, numa dignidade reservada.
Já em Nairobi, a cidade moderna de reflexos coloniais, convida a um passeio prolongado pelo Uhuru Park, passando pela estação de comboios, o Conference Center, a City Hall, o Bussiness Center, a Moi Avenue e a Mesquita Jamia. Admiro os penteados complicadíssimos das mulheres-fortaleza africanas, que se saracoteiam, altivas, no seu porte primitivo. Seguimos na senda da Biblioteca Mcmillan e do mercado, virando depois pela Biashara Street, até à universidade de Nairobi. Da Uhuru Highway encaminhamo-nos para o National Museum e finalizamos a visita no Snake Garden.
O Sol sucumbe a oeste e as sombras estendem o seu véu mudo. Já no Stanley, o hotel inaugurado em 1902 e que mantém todo o ambiente da época vitoriana, as malas aguardam o regresso. As zonas de penumbra, dadas pelos reposteiros de veludo com franjas e cordões de grande efeito cénico, esmaecem descoloridas. As paredes encontram-se forradas de fotografias a preto e branco, da época de Karen Blixen. Ao longe um clarinete murmura uma nota saudosa.
A luminosidade alonga a planície mas é a patine do tempo que coloca no lugar justo as memórias desses dias idos. Ao sobrevoar o céu queniano, matizado por jorros de nuvens púrpuras, dou-me conta que a jornada se redimensiona agora a uma outra escala: era a exuberância telúrica de África inscrevendo-se na memória como uma tatuagem na pele, num elogio da savana feiticeira que se oferece preciosa…