Na quinta prancha de A Balada do Mar Salgado, Corto Maltese, o marinheiro de longo curso, surge à deriva, na imensidão oceânica do Pacífico… precisamente onde se situam as ilhas dos deuses maoris que, desde sempre, encarnaram o protótipo do paraíso terrenal. Mas há também os quadros de William Hodges, de um Taiti monocromático feito de paisagens fortes; ou a paleta explosiva das pinturas polinésias de Gauguin, ou ainda os quadros abstracionistas da Polinésia de Matisse… pérolas de arte inspirada numa terra inusitada, que se cola à pele como um carimbo de maresia…
Texto e Fotos: Maria João Castro
À chegada é-se recebido com um sorriso sincero e um cumprimento dito numa voz delicada:
¾ Ia Orana, que é como quem diz “Olá” em maori, após o que nos colocam um colar de de gardénias taitianas que têm o condão de refrescar os sentidos, avivando-os.
Papeete, a capital do Taiti espreguiça-se entre as encostas do vulcão Aorai e o porto. Perto do ancoradouro, a avenida principal – Pomare – leva-nos até ao mercado da cidade que pulula no interior da estrutura arejada de dois andares. Aromas a frutas e legumes misturam-se com o cheiro intenso do peixe e dos mariscos, diluindo-se pouco depois nas fragrâncias de monói que se escapam de frascos desarrolhados.
As ruas da cidade são percorridas por um frémito de vida. Desfilam trucks, exibindo a carroçaria de madeira pintada de cores vivas e apinhada de mercadorias e população. A catedral e o Museu da Pérola Negra mercem uma visita; a primeira pagã na sua beatice, o segundo religioso na sua arte.
Após alugar-se um automóvel, parte-se à descoberta da ilha e até ao Museu Gauguin, local onde se destacam esculturas originais em madeira do artista, e uma réplica da sua última moradia nas Marquesas; no exterior, tikis gigantes apresentam-se como guardiães mudos de um artista singular. A jornada continua, passando-se pelas cascatas de Faarumai, e pelo túmulo de Pomaré V, até regressar ao ponto de partida.
A aurora clareia o horizonte quando a avionete nos leva até à ilha de Moorea, circundada por uma lagoa de ondas a fingir. Ao mergulhar-se na água a 32 graus o sonho do paraíso terrenal adensa-se. Só há que deixar-se ir na imensidão dos matizes azuis e verdes que a superfície aquática reproduz, demasiadamente utópica para ser real. O Pacífico, o mais extenso e profundo mar do mundo, abarca mais de um terço da superfície da Terra e contém acima de metade do seu volume de água. Quem lhe deu o nome foi o navegador português Fernão de Magalhães, devido à placidez com que o enfrentou, na sua viagem de 1520, ainda que a sua serenidade seja aparente.
O entardecer consome-se em leituras, frente a uma água de um turquesa-esmeralda de tons impossíveis. É que os escritores ajudaram à fama do arquipélago: Herman Melville, Robert Louis Stevenson, Pierre Loti, Jack London e Victor Segalen escreveram textos que são verdadeiras pinceladas de amor na tela maori. Finalmente, a influência progressiva de outros artistas – nomeadamente Jacques Brel – ajudou a criar e preservar a imagem de paraíso sonhado, qual Shangri-Lá tropical.
A manhã traz o canto estridente dos pássaros, que atravessa as paredes de madeira do bungalow sobre a água, abraçando as horas seguintes. Os minutos, as horas e os dias fluem ao sabor das marés após um casamento segundo so rituais maoris, uma experiência irrepetível. Chega a altura de abandonar a ilha-morcego e partir, tendo como destino Bora Bora, a Pérola do Pacífico.
É obrigatório acordar cedo para aproveitar ao máximo o Éden prometido. Colocar uma flor nos cabelos, vestir um paréo e deixar as horas e os dias fluir, caminhando pelo areal coralino ao sabor da brisa carregada de perfume das frangipanas, deixando que a água beije os pés e em seguida apague as pegadas da beira-mar, como se elas nunca tivessem existido…
À noite, os odores evidenciam-se, flutuando no ar. Frutos adoçados pela baunilha e pelo coco e mariscos que fazem companhia a peixes de mil cores, são expostos sobre o grelhador para depois se oferecerem num requinte de palato. Os banquetes noturnos servem-se na praia, entre fogueiras que iluminam bailarinos e músicos, num saracotear de corpos e desejos adocicados pelas gardénias da perdição.
A ideia de que a ilha é ainda mais bela vista do ar “obriga” a um passeio de helicóptero. A lagoa de Bora Bora, com setenta e oito quilómetros quadrados, é formada por uma barreira de coral densamente submersa em oníricos tons azul-esverdeado ou verde-azulado. Do lado interno, praias banhadas por águas quietas; no exterior da barreira, as vagas do Pacífico real, escuras e cobertas com espuma branca, desfazem-se, indomáveis, nos corais. Do ar, destacam-se os bungalows dos hotéis, flutuando sobre a lagoa. Mais adiante, alguns tubarões-limão nadam, deixando apenas ver as suas barbatanas, a romper a superfície aquosa.
O dia amanhece encoberto. É altura de visitar o Lagonário de Bora Bora. Criado na própria lagoa, permite nadar por entre raias, tartarugas gigantes, tubarões-limão e uma panóplia de peixes tropicais de cores iridescentes.
Contudo, há experiências aquáticas mais pacatas. O Aquasafari é uma delas, por sinal espantosamente sedutora. Mergulhamos na lagoa, a uma profundidade de cerca de cinco metros, com uns capacetes transparentes alimentados pelo tubo ligado à garrafa de oxigénio que se encontra a bordo da pequena embarcação. Durante uma hora passeamos com os pés assentes no fundo do mar, graças ao cinto de chumbos. O espetáculo é surpreendente: a transparência infinita das águas permite observar cardumes à distância da mão: tão depressa se imobilizam como disparam a nadar, modificando a tonalidade da água. Assim que estendemos um pouco do pão, de todos os lados aparecem peixes, de formas espantosas e cores excêntricas que ondulam ao sabor de uma melodia que só eles ouvem. A coreografia é perfeita. Um cavalo-marinho esconde-se num coral, de onde espreita uma moreia de ar feroz. Peixes-palhaço e peixes-papagaio multiplicam-se, cruzando-se com os numerosos peixe-borboleta. Os peixes-cirurgião fazem dançar as suas caudas ao ritmo da corrente, mas o que mais impressiona é o silêncio deste filme real. A mudez transparente do baile único do mundo submerso guarda-se como um tesouro raro, numa elegância de movimentos que irrompem na transparência da lagoa.
Quando a noite ameaça descer, a ilha entra na maior tranquilidade. Ao fundo, a espuma das ondas, que se desfazem na barreira de coral, assemelha-se a um longo estendal de grinaldas oferecidas pelos deuses. Ainda me demoro à beira-mar para finalmente contemplar, noite cerrada, um céu que tremeluz de estrelas, qual véu de tule pontilhado a diamantes.
A data da partida aproxima-se, silenciosa. Após uma estada na Polinésia, a impressão que se tem ao levantar voo é a de estarmos a sair de uma tela irrealizável. Jacques Brel dizia que o que conta numa vida não é a duração mas a intensidade; atrevo-me a fazer minhas as suas palavras. Mergulho numa insondável agnosia e acredito que cada um de nós é os sonhos a que se amarra.
¾ Mauru´uru, que é como quem diz, “obrigada” Polinésia.
Resta uma pérola negra num dedo branco, o único testemunho de que tudo aconteceu…