Bem no centro da Colômbia, entre a densa cordilheira dos Andes e a costa do Pacífico, estende-se um vasto planalto, imenso e quase desabitado. Chama-se Los Llanos e grande parte desta região situa-se na província de Meta. Ao sul desta ergue-se a Serra da Macarena, próxima da vila que lhe tomou o nome. É lá que nasce o Caño Cristales, um rio que escorre montanha abaixo por um leito forrado de algas vermelhas, criando a ilusão de águas tingidas quando, na verdade, não podiam ser mais cristalinas. Porém, as duas pistas de terra que conduzem até lá são interditas à circulação, fazendo deste um paraíso cercado…
Texto e Fotos: Alexandre Correia
Sobrevoávamos as planícies de Los Llanos, no voo entre Bogotá e La Macarena, quando da janela do avião espreitámos a longa linha de terra que se recortava entre o verde que dominava a paisagem. O voo desde a capital da Colômbia até esta pequena vila, no sul do “Departamento” de Meta, não demora nem uma hora e meia. Por estrada, tarda dez vezes mais tempo, com sorte… De Bogotá até Villavicencio, a capital da província de Meta, o itinerário é curto e todo em auto-estrada. Basta uma hora para trocarmos uma cidade pela outra. A partir de Villavicencio, há que seguir uma estrada recentemente asfaltada até Vista Hermosa. Depois, prossegue-se por uma pista de terra, atravessando no caminho a serra da Macarena, toda ela hoje integrada num vasto Parque Nacional Natural que recebe o seu nome. De Vista Hermosa a La Macarena, a pista é dura e torna-se bastante difícil de percorrer durante o Inverno. São imensas as passagens a vau. E frequentemente, depois de grandes chuvadas, estas passagens tornam-se temporariamente intransponíveis; por vezes há que esperar algumas horas para que o caudal desça o suficiente para permitir a travessia de um veículo, mas naqueles dias em que chove quase permanentemente, de manhã à noite, a espera pode prolongar-se por algumas jornadas. Em condições normais, com bom tempo, esta ligação cumpre-se em seis ou sete horas, conduzindo com bom ritmo, a uma média de cerca de 20 km/hora.
ENTRE O MEDO E O “RECEIO”…
A verdade é que raramente alguém se atreve a percorrer a pista de Vista Hermosa a La Macarena. E isso não tem nada que ver com as condições adversas, nem tão pouco com a dureza extrema desta pista de terra e o receio de encontrar-se intransponível. O que leva a que o trânsito nestas paragens seja quase inexistente chama-se medo. Isso mesmo, medo! Ninguém faz esta viagem por estrada por medo de ataques das FARC. Das famigeradas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia e também de alguma das outras milícias armadas que se escondem nesta região quase desabitada, mas abundante de vida. E por questões de segurança, ninguém percorre a pista para La Macarena, a menos que isso seja absolutamente necessário, ou sob protecção de uma forte escolta militar.
Toda esta parte da província de Meta foi nos anos 1990 um forte bastião das FARC, a quem o Governo da Colômbia atribuiu então a gestão de cinco municípios da região. Isso ocorreu no âmbito de um dos inúmeros processos negociais tendo em vista um acordo de paz com os guerrilheiros, por iniciativa de Andrés Pastrana, à época Presidente da Colômbia. Jessica, a nossa guia em La Macarena, companheira indispensável para que pudéssemos sair da vila e visitar alguns sectores do Parque Nacional Natural local, contou-nos que nasceu nessa altura e cresceu com os guerrilheiros a tomar conta de La Macarena. As suas recordações de infância são felizes. Tratar bem as comunidades onde se movimentavam e, sobretudo, as crianças, era uma das regras das FARC, que conquistavam facilmente a miudagem com brinquedos e guloseimas. Todos gostavam deles. Até que Alvaro Uribe sucedeu a Pastrana e adoptou outra estratégia, completamente diferente. O novo Presidente colombiano decidiu romper os acordos do seu antecessor e enviou tropas para reconquistar os territórios “oferecidos” aos guerrilheiros. O exército chegou a La Macarena em 2002 e a retirada das FARC não foi pacífica. Os guerrilheiros tinham construído diversas estruturas e até as duas estradas de terra que permitem aceder à vila foram abertas pelas FARC. Quando partiram, as suas bases foram tomadas pela comunidade local, mas os guerrilheiros voltaram para se vingar, deixando atrás de si um rastro de sangue e muitos cadáveres. Isso bastou para mudar determinantemente a imagem que tinham construído, tal como contribuiu para uma crescente aceitação da presença do exército da Colômbia. E se houve tempos em que quer uns, quer outros, despertavam o maior pavor junto das populações, desde que os militares deixaram de ser remunerados por cada guerrilheiro que abatiam, acabaram também as mortes de inocentes que eram assassinados apenas para garantir regularmente o encaixe extraordinário deste prémio. Hoje, os “maus”, digamos assim, são mesmo os guerrilheiros e os membros das diversas milícias que ainda existem, num país onde há imensa gente que anda armada e faz do uso dessas armas o seu modo de vida. Daí que a presença dos militares tenha-se tornado num sinónimo de protecção para as populações. E os militares são instruídos no sentido de estabelecer o melhor relacionamento com as comunidades, pautando-se por uma atitude simpática e sempre educada. Pudemos verificar isso mesmo por todo o lado onde andámos na Colômbia, não apenas em La Macarena. Mas nesta vila, onde a cada instante nos cruzamos com uma patrulha, quase sempre de três homens, de metralhadora ao peito, o contacto cordial com os militares faz com que essa presença constante não constitua um factor de tensão, mas até mesmo o oposto, despertando um sentimento de alívio. Precisamente por fazer com que qualquer um se sinta em segurança.
Não são só as pessoas que viajam de avião até La Macarena, pois de um modo geral, todas as mercadorias chegam por via aérea. E a preços por vezes exorbitantes! Incluem-se nesta lista boa parte dos alimentos frescos, como frutas, legumes e vegetais, que por isso mesmo são um bem escasso e caro, que não frequenta todas as mesas, ao contrário das carnes de vaca (de “rês”, como ali dizem…) e de frango, provenientes dos produtores locais, que não conseguem senão vender aí mesmo, pois o preço para escoar estes bens sofreria o mesmo agravamento incomportável. Daí que mesmo os ricos produtores de gado, não o são senão simbolicamente. Um quilo de batata é tão caro, que quase ninguém a come. O seu lugar é ocupado, na dieta alimentar, pela banana. Bananas enormes, que chegam a ter o tamanho de um braço, sem exagero! E come-se banana em puré, excelente, diga-se de passagem, cozida, ou frita em finas rodelas que se confundem mesmo com batatas fritas; são uma delícia a acompanhar os suculentos bifes que se servem nas cantinas de La Macarena, onde o costume é a mesa de tábua corrida, partilhada por quem vem comer. E assim se partilham conversas, por vezes o melhor entretenimento para ocupar os serões, que na vila nunca entram pela noite dentro, pois o ritmo ali é ir deitar com as galinhas e acordar com o cantar dos galos.
Foi assim que uma noite conhecemos Orlando Chavez. Hoje é professor universitário, mas em 2001 era apenas um simples “maestro”, que foi colocado a dar aulas de ensino básico numa das zonas sob controlo das FARC. Contou-nos que nessa altura, recebeu uma convocatória dos guerrilheiros para assistir à cerimónia de libertação de 250 soldados do exército que tinham sido feitos prisioneiros. “E como isso me soou a uma ordem, achei que era melhor obedecer”, recordou Chavez, que foi para a cerimónia com a convicção de ir assistir a um momento histórico, que conduziria à paz na Colômbia. “Infelizmente, o tempo encarregou-se de mostrar que isso não aconteceu, mas valeu imenso a pena ter ido”, prosseguiu, explicando que a sua presença deu lugar a um prémio: “Convidaram-me para vir conhecer La Macarena. Apesar do autocarro ser apenas um camião com bancos de pau na caixa de carga e a estrada uma pista poeirenta e esburacada, não hesitei em vir. Ter ido a Caño Cristales foi a melhor recompensa. Atravessámos o rio Guayabero numa piroga e depois caminhámos o dia inteiro, entre ir e voltar. Mas a beleza daquele troço de selva e o rio com as águas cristalinas a escorrerem por um leito forrado de plantas vermelhas ficou para sempre na memória. E não descansei enquanto não pude voltar”, confessou-nos. Orlando Chavez ficou surpreso com a enorme evolução da vila – “a primeira vez que vim, eram apenas três ruas e faltava quase tudo…” – mas voltou a perder-se de amores por Caño Cristales, um lugar que os nossos companheiros belgas classificaram, sussurrando, como quem diz um segredo que não deve ser revelado, que “é só para conhecedores!” E é mesmo, mas não contar a ninguém seria demasiado egoísmo…
CALOR SUFOCANTE
E RECEPÇÃO CALOROSA
Somos recebidos em La Macarena com muito calor. Assim que a porta do avião se abriu e a cabina foi invadida por um bafo de ar quente, fazendo sentir algum desconforto, percebemos que o comandante não se tinha enganado quando anunciou, momentos antes da aterragem, que a temperatura no destino era de 35 graus centígrados; pouco antes, ao fim da manhã, em Bogotá, os termómetros marcavam apenas 14 graus… Enquanto Bogotá se situa a 2660 metros acima do mar, a altitude de La Macarena é de apenas 233 metros, o que por si só explica boa parte desta enorme amplitude térmica. Calorosa foi também a nossa recepção, ou não fossemos dos raros estrangeiros que chegavam. Além de nós, viajou um casal de belgas, com quem partilhámos mesa e uma longa caminhada através da selva. Muito discretos, até silenciosos, tinham connosco em comum a paixão por viajar a conhecer o mundo. Contaram-nos que todos os anos acrescentavam mais alguns países ao seu passaporte. Mas não viajavam com aquela voracidade de somar carimbos. Apreciavam, como nós, a tranquilidade de descobrir o que mais lhes agradava sem pressas. No ano anterior, tinham feito mais uma longa viagem pela China, entre outra viagem à misteriosa Coreia do Norte, onde os estrangeiros são recebidos com alguma frieza e não dispõem da mais pequena margem de manobra, permanecendo permanentemente acompanhados por “guias”, que os orientam através de um programa definido, onde tudo são regras e não há excepções.
Em La Macarena também não andamos propriamente à solta. Registamo-nos no posto militar do aeroporto, assim que chegamos, num procedimento idêntico ao de uma fronteira. E para que possamos receber o “visto”, é indispensável contarmos com um programa organizado e orientado por um guia oficial. Neste caso, todavia, entende-se perfeitamente que só desse modo os militares conseguem assegurar a segurança de quem viaja até este lugar, que só recentemente abriu ao turismo e, mesmo assim, com grandes limitações: em 2013 chegaram cerca de 6000 forasteiros, dos quais somente uns 10 por cento eram estrangeiros; feitas as contas, estes números representam uma média de 16,5 visitantes por dia e dois estrangeiros dia sim, dia não. Connosco e com os belgas, rebentámos a escala!…
De fundação recente, La Macarena passou a figurar no mapa da Colômbia como um município em 1980, cerca de três décadas depois dos primeiros colonos aí se terem estabelecido, numa invasão que implicou expulsar as duas tribos de índios que ancestralmente detinham estas terras. A província de Meta tem sensivelmente a área de Portugal, mas uma população inferior a um milhão, enquanto o município de La Macarena tem 11.000 km2, pouco mais do que o Distrito de Beja, embora cinco vezes menos população, contando com cerca de 30 mil habitantes, dos quais somente 2700 vivem na vila.
E quem diria que nesta terra, bem no interior, se come imenso peixe? Fresco, mesmo muito fresco, acabado de apanhar. Ou melhor, de pescar, porque o rio Guayabero é rico em peixe. Antes o rio era também uma via de acesso a La Macarena, mas desde há muito que o risco é sensivelmente o mesmo do que circular pela estrada. Um dos afluentes do Orinoco, o Guayabero é um rio enorme, que atravessa boa parte da Colômbia. Nasce na cordilheira dos Andes e atravessa estas planícies de Los Llanos até se encontrar com o Orinoco, bem mais adiante. Não há nenhuma ponte para cruzar o Guayabero nas imediações de La Macarena. Assim, quem se aventura pela pista desde Villavicencio e Vista Hermosa, tem de atravessar o rio numa balsa. Há duas sempre atracadas na margem esquerda. Uma para os automóveis, que raramente é usada, e outra para animais, com grandes grades. Esta sim, é frequentemente usada para cruzar manadas de gado entre os pastos das duas margens.
Por tudo o que contamos, não é de estranhar que em La Macarena praticamente não haja automóveis. Há sim jipes, mas são poucos e quase todos muito velhos e remendados. Os veículos mais recentes são pick-ups 4×4. Rolámos pelas pistas em redor desta vila numa Toyota Hilux a gasolina, novinha, mas também num Isuzu Rodeo com mais de duas décadas de “maus caminhos”. Também tinha motor a gasolina. E além de “constipado”, pois volta, não volta, engasgava-se todo e fartava-se de “tossir”, a embraiagem parecia já ter conhecido melhores dias. Mas o certo é que este Isuzu lá se ia aguentando, percorrendo, dia após, dia, o estradão até Caño Cristales, a maior atracção desta região perdida nos confins da grande planície selvagem colombiana.
No primeiro dia em que pudemos ir até Caño Cristales, tivemos imensa sorte. Navegámos durante uns minutos pelo Guayabero e depois seguimos a pista em 4×4. Tinha chovido um pouco de noite e o solo estava húmido, pelo que os rodados nem levantavam pó. Caminhámos durante horas pelos trilhos da selva, sempre sob discreta protecção de patrulhas militares. E lavámos o suor com deliciosos banhos numa cascata e numa enorme piscina natural. Mas no final da tarde abateu-se sobre a região um violento temporal e choveu torrencialmente durante mais de uma hora. Daí que não voltámos a ver as águas cristalinas de Caño Cristales; a enxurrada alterou por completo a imagem do rio, retirando-lhe o tal encanto especial que tanto apaixonara o professor que conhecemos.
Reservámos para a última jornada um passeio de piroga pelo Guayabero e, uma vez mais, fomos recompensados com um dia magnífico. Assim que nos afastámos de La Macarena descobrimos uma base de fuzileiros navais bem camuflada sob a densa vegetação, numa das margens. Mais adiante, duas lanchas com metralhadoras pesadas controlavam toda a movimentação fluvial; ninguém passa sem ser identificado, nem prossegue sem dispor de autorização. A partir desse ponto, não nos cruzámos com mais ninguém. E foi graças a isso que tivemos oportunidade de avistar desde um raro crocodilo do Orinoco a imensas tartarugas, além de incontáveis aves, entre as 420 espécies que estão registadas na região de La Macarena. O grito de algumas araras a ecoar pela selva ficará para sempre gravado como um dos sons desta jornada, mas as aves que melhor avistámos foram alguns numerosos bandos de “perus hediondos”, assim chamados por soltarem um bafo horrivelmente mal cheiroso sempre que se sentem ameaçados por algum predador. Felizmente, não nos aproximámos o suficiente…