Quem não sonha reformar-se aos 50 anos e partir pelo mundo fora, numa viagem que só terminará quando se esgotarem os destinos? Provavelmente quase todos nós o sonhamos, mas são muito poucos os que, realmente, alguma vez concretizam estes planos. O alemão Gunther Holtorf fez precisamente isso: em 1988 comprou um Mercedes-Benz 300 GD e arrancou. Uma primeira experiência em África e um terceiro divórcio depois, conheceu Christine, a mulher da sua vida, com quem voltou a partir, agora para a viagem das suas vidas. A de Christine terminou mesmo antes de chegarem ao fim, mas Gunther não desistiu enquanto não conduziu o “Otto” por 215 países e territórios do mundo. O mais célebre dos “G” alguma vez produzidos não foi a 16 dos 195 países, mas figura no “Guiness World Records” como o recordista da mais longa viagem ininterrupta. Foram quase 900.000 quilómetros em 26 anos!…
Texto: Alexandre Correia Fotos: Arquivo de Ghunter Holtorf
Conhecemos Gunther Holtorf há pouco mais de uma década, num encontro inesquecível nas montanhas perto de Graz, na Áustria, não muito longe da fábrica onde os Mercedes-Benz G são produzidos. Ambos estávamos lá por isso. Comemoravam-se os primeiros 25 anos sobre o lançamento deste modelo emblemático e éramos convidados de honra da marca de Estugarda, ainda que por motivos bem diversos. Gunther tinha acabado de chegar da Austrália, onde tinha passado cerca de dois anos, percorrendo, juntamente com a sua mulher, todos os recantos do “quinto continente” ao volante de um Mercedes-Benz 300GD que nessa altura somava já 414.001 quilómetros. Comprara-o novo em 1988, seduzido pela ideia que o slogan de um anúncio deste modelo lhe despertou: “onde há um G, há um caminho” e Gunther Holtorf confessa que, “na verdade, eu estava um pouco céptico quanto a esta promessa pois, afinal de contas, já tinha visto alguma coisa do mundo antes de iniciar esta aventura, pelo que tinha uma ideia clara do que um veículo teria de suportar numa viagem como eu imaginava”, gozando de total liberdade, para chegar a qualquer lugar e passar o máximo de tempo possível em plena natureza, à margem, digamos assim, do mundo civilizado. Isso requeria pelo menos três coisas: fiabilidade, grande autonomia e espaço, para que o veículo se convertesse em muito mais do que um mero meio de transporte. Gunther queria uma casa sobre rodas, que pudesse levar não interessa onde. Mas não queria um palácio, porque senão, teria escolhido um camião. Bastaram-lhe os cerca de dois metros entre as costas dos bancos da frente e o portão da bagageira do 300GD longo para “construir” a sua casa de férias.
Encontrámo-nos numa esplanada em plena montanha, para almoçar na companhia de todos os responsáveis pela concepção do “G”, os que começaram a trabalhar neste projecto em meados dos anos 1970, assim como os encarregados da sua produção, iniciada em 1979, uma década antes de Gunther Holtorf arrancar rumo a África, para uma primeira viagem à descoberta do continente negro a bordo do “Otto”. Foi Christine, a sua quarta mulher, quem escolheu este nome para o carro, como nos explicou Gunther: “É certo que se trata de uma máquina, mas quando vivemos anos inteiros com ela, torna-se parte da família e dar-lhe um nome acabou por nos parecer uma coisa natural. Chamámos-lhe Otto e assim ficou…”
Em 2004, os Holtorf ainda estavam a meio da sua longa viagem. Nos dez anos seguintes, a quilometragem do “Otto” mais do que duplicou. Gunther tinha consigo um enorme mapa, onde assinalava os países que já tinha visitado com Christine e o “Otto”. Esse foi o grande tema da conversa, uma breve conversa, pois teríamos ficado dias a falar sobre viagens, as deles e as nossas. Foi mesmo esse o grande aliciante da conversa, inesquecível: se confrontássemos mapas, teríamos registos bem diversos, o que despertou imensas perguntas, de parte a parte. Gunther conhecia razoavelmente bem Portugal, pois contou que nos anos 1970 tinha estado alguns dias entre nós, hospedando-se nalgumas Pousadas que lhe ficaram na memória. Ainda não tinha vindo a Portugal ao volante do “Otto”, mas não tardou: entrou pela foz do Guadiana, em Vila Real de Santo António, a 17 de Dezembro de 2004, depois de algumas semanas através de Marrocos e do Sahara Ocidental, num vai-vem por paragens que tão bem conhecíamos, até aos confins da Mauritânia. Depois de entrarem em Portugal, os Holtorf foram desde logo até Sagres e nessa noite já estavam em Lisboa, onde chegaram subindo ao longo da costa. “Lisboa é uma cidade admirável e passeámos pelos bairros mais históricos, mas conduzir o ‘Otto’ nas ruas estreitas e apertadas deu-me imenso trabalho…”, – recorda Gunther. Passaram duas noites na capital e de Lisboa prosseguiram rumo ao norte, até ao Porto, deixando Portugal pela fronteira de Chaves, a 20 de Dezembro, após terem percorrido 1324 quilómetros do Algarve a Trás-os-Montes. A propósito desta visita, Gunther reconhece que “Portugal é um dos países que assinalei que gostaria de regressar com calma, depois de terminada esta viagem”, tanto mais que a língua portuguesa lhe é muito familiar, “embora a tenha aprendido no Brasil, pois vivi muito tempo na América do Sul”. E agora que Gunther Holtorf já estacionou definitivamente o “Otto”, quando, no final do ano passado, entregou as chaves a Dieter Zetsche, o Presidente da Mercedes-Benz, confiando o seu 300GD ao Museu da Mercedes-Benz, em Estugarda, quem sabe se não nos reencontramos e voltamos a passar umas horas a conversar sobre viagens e aventuras, em Lisboa?
VIAJAR PARA MUDAR DE VIDA
Hoje Gunther Holtorf tem 78 anos e está definitivamente reformado. Na verdade, se considerarmos que a sua volta ao mundo com o “Otto” foi puro lazer, este alemão teve o privilégio de poder reformar-se logo aos 50 anos. Trabalhou metade da vida no mundo da aviação, o que lhe incutiu o enorme gosto pelas viagens. E embora tivesse licença de piloto, não foi isso que o levou a viajar pelo mundo, porque trabalhou essencialmente nos escritórios da Lufthansa, que dirigiu em inúmeros pontos, desde a Ásia à América do Sul. Quando decidiu que estava na hora de pôr termo à sua carreira profissional e aproveitar a segunda metade da vida para si mesmo, Gunther dirigia a área de aviação da Hapag-Loyd, grupo germânico mais conhecido pela sua enorme companhia de navegação, que em 1972 adquiriu os primeiros aviões para transportar os passageiros dos seus navios de cruzeiro até às escalas de destino, mas que depois cresceu bastante e ultrapassou esse âmbito quase que “privado”.
Gunther deixou a Hapag-Loyd Flug com uma verba confortável, que lhe permitiu considerar a possibilidade de parar de trabalhar durante um par de anos, para viajar em África. Já tinha comprado um Mercedes-Benz 300GD em 1988 e estava mesmo determinado a fazê-lo. A ideia inicial era somente dar um grande passeio por África, por terras que o atraiam imenso. Em Dezembro de 1989, uns dias antes do Natal, apanhou “boleia” de um avião da Lufthansa Cargo que ia voar vazio até Mombaça. Como as suas ligações à Lufthansa ainda eram muito fortes, fizeram-lhe um preço “simbólico” para transportar o seu G até ao Quénia. Gunther partiu com Beate, a sua terceira mulher. Mas a experiência não correu bem. E este alemão aprendeu o quanto é válida a expressão “se queres conhecer bem alguém, leva-a a viajar contigo…” Na Primavera de 1990 a viagem e o casamento estavam terminados!
Além de ter entendido que não iria longe com Beate, Gunther percebeu igualmente que o Mercedes-Benz 300GD precisava de sofrer uma intervenção que o transformasse numa casa sobre rodas com grande raio de acção. Daí que ao mesmo tempo que voltava à condição de “single”, também aproveitou para retirar os bancos traseiros do seu carro, instalando-lhe uma plataforma com dois colchões fabricados à medida, sob a qual montou grandes gavetões onde além do “guarda-fatos”, dispôs o material de cozinha e a “casa de banho”, que mais não eram do que um pequeno fogão a gás e um depósito amovível para água potável, que servia de duche, quando colocado numa posição elevada, preso na porta da bagageira. E como não precisava de um grande “pé direito” nesta casa, pois a traseira servia somente para dormir, criou um “tecto falso”, acima das janelas, que aproveitou como espaço para arrumações, suspendendo de ambos os lados algumas bolsas onde colocou desde utensílios de cozinha a objectos pessoais de uso diário e até uma saboneteira, que mais tarde lhe salvaria a vida: em 1994, num momento em que se encontrava sozinho a revisitar alguns parques da Zâmbia e do Zimbabwe, deixou-se adormecer deitado numa rede que havia trazido do Brasil e acordou sobressaltado por um ruído estranho: “Assim que abri os olhos, dei de cara com uma hiena, que me olhava. Apanhei um susto enorme e acho que o mesmo sucedeu com a hiena, que fugiu espantada quando gritei”, recorda Gunther. “Ao arrumar tudo de novo dentro do carro, encontrei a saboneteira mordida e percebi que o que me despertou foi ruído da hiena a trincar a saboneteira”. O sabonete desapareceu, provavelmente comido pela hiena, mas a saboneteira seguiu viagem, até ao fim, como se fosse um amuleto da sorte.
Gunther Holtorf continuava determinado a viver essa grande viagem através de África, com que há muito sonhava. Mas os seus planos não previam uma viagem solitária. E uma vez divorciado e com falta de companhia, não se inibiu em encontra-la publicando um anúncio num jornal. Respondeu-lhe uma jovem mãe solteira de Dresden, nascida e criada na Alemanha Oriental, que em meados de 1990 estava já em processo de reunificação com a Alemanha Ocidental. Foi assim que em Abril conheceu Christine, de 34 anos. Depois de alguns encontros, Gunther, então com 53 anos, perguntou-lhe “porque não fazemos uma viagem?” Christine pensou no assunto e respondeu-lhe: “Sim, porque não?” Em Novembro de 1990 estavam de partida, depois de Christine ter matriculado o seu filho no colégio interno. Atravessaram a Europa e o Mediterrâneo, entrando em África pela Argélia, rumo ao Sahara. Apaixonaram-se pelo deserto – “guardo na memória o espaço, o silêncio, o vazio, a absoluta tranquilidade do Sahara” – e um pelo outro. A viagem de “talvez” dois anos por terras africanas, durou cinco e quando já tinham conhecido boa parte do continente, Gunther Holtorf sentiu saudades da América do Sul, onde passara alguns anos, enquanto trabalhava para a Lufthansa, mas que Christine não conhecia. O pretexto para carregar “Otto” num contentor rumo a Montevideo, capital do Uruguai, foi querer levar Christine aos cenários onde tinha vivido. Na verdade, estava a alargar a viagem com o Mercedes-Benz 300GD, transformando-a numa imensa volta ao mundo, que somente terminou ao fim de 26 anos.
Durante seis anos subiram a América de sul a norte, desde a ponta da Argentina ao Alaska e depois novamente até ao Uruguai, onde tinham começado. Tal como já acontecera em África, foram viajando por etapas, intervaladas com pausas para regressarem a casa, na Alemanha, mas também para irem a Jakarta, onde Gunther se instalou em 1973, quando foi nomeado director regional da Lufthansa. Então a capital da Indonésia era ainda uma pequena cidade, se a compararmos com a actual metrópole, com quase 30 milhões de habitantes. Holtorf recebia frequentemente amigos na sua casa em Jakarta e foi desenhando croquis cada vez mais completos para que descobrissem o caminho, pois não havia um mapa da cidade que permitisse a alguém orientar-se. Foi Gunther Holtorf quem desenhou o primeiro mapa de Jakarta, socorrendo-se de fotografias aéreas e de todas as informações que foi recolhendo e que mais tarde nunca deixou de ir actualizando. O seu mapa, cuja primeira edição foi publicada em 1977, ainda hoje é a referência usada pelas autoridades de Jakarta e o rendimento que isso lhe trouxe foi fundamental para suportar os encargos da viagem. Porque Gunther jamais quis ser patrocinado por nenhuma companhia. “Preferi sempre a liberdade de poder decidir o meu programa, a ter quem me pagasse as contas e indicasse o caminho”, afirma este alemão que, no entanto, viria a contar com um importante suporte da Mercedes-Benz.
“Na verdade, sem o apoio da Mercedes-Benz não teria conseguido ir a muitos países, como Cuba, a Coreia do Norte, o Vietname e a China”, reconhece. O ano de 2005 foi o primeiro em que “Otto” praticamente não teve descanso: entrou na Líbia logo nos primeiros dias, registando a passagem pelo 69º país percorrido, e terminou no Kazaquistão, o 100º país, que foi também o primeiro onde tocou a Ásia. Então Christine já sofria de um tumor, que se manifestou por uma paralisia facial e cujo diagnóstico mudou de benigno para maligno. A partir dessa altura, os tratamentos impediram Christine de acompanhar Gunther, cedendo o lugar a Martin, o seu filho, que já tinha 27 anos quando viajou a bordo do “Otto” desde Jakarta até à Europa, em 2007. No ano seguinte, Christine voltou a poder viajar e partiu com Gunther e “Otto” para as Caraíbas. Foi o próprio Raúl Castro que assinou a autorização para que pudessem entrar em Cuba com o Mercedes-Benz 300GD . A última viagem de Christine foi a Inglaterra e Escócia, em Maio de 2009; piorou e já não chegou a ir até à Irlanda. Morreu em Junho de 2010, duas semanas depois de ter-se finalmente casado com Gunther. Martin já tinha sido adoptado por Gunther há longos anos e acompanhou-o em mais algumas viagens pela Ásia. E já em 2013, quase no final da volta ao mundo, Gunther regressou a África com uma nova companhia: Elke Dreweck, amiga 30 anos mais nova, que acabara também de ficar viúva. Sentou-se a bordo do “Otto” na Rússia e daí desceu até África, que atravessou por completo, visitando 25 países, sete dos quais nunca antes percorridos por Gunther ao volante do “Otto”. Depois de Dreweck voltar a casa, ainda em 2013, Gunther fez uma escala na ilha Maurícia, antes de uma pausa na Alemanha, para já no início de 2014 regressar à Ásia. O Mercedes-Benz 300GD foi desembarcado em Singapura e subiu através da Malásia e da Tailândia para alcançar Myanmar, o derradeiro destino desta região que faltava no itinerário de “Otto”. Da antiga Birmânia, foi necessário fazer o percurso inverso até Singapura, para carregar o 300GD pela penúltima vez – a 40ª… – dentro de um contentor, seguindo de navio até Madagascar. Esta grande ilha do Índico, foi o ante-penúltimo país visitado, da lista dos 215 países e territórios por onde “Otto” rolou. E aí, com a viagem praticamente terminada, aconteceu o único acidente digno desse nome: ao cruzar-se com um carro que não se desviou da frente, numa recta, Gunther viu-se obrigado a sair da estrada e o Mercedes-Benz tombou sobre o lado direito. Muito embora os danos resultantes deste acidente tivessem sido mínimos, Gunther Holtorf decidiu trocar a carroçaria do “Otto” por uma igual, que só foi necessário pintar de “azul China”. A reparação foi executada na Áustria e uma vez concluída, Gunther cruzou a Europa para dar uma derradeira vista de olhos ao Mediterrâneo, no Mónaco, antes de atravessar o Canal da Mancha para as ilhas britânicas e, finalmente, percorrer a Irlanda. Daí, seguiu para o norte da Europa, até aos países bálticos, para chegar ao último país que fez questão de visitar: a Bielorrússia. Para obter o visto de entrada neste país, considerado a última ditadura que persiste na Europa, Gunther fez inúmeros pedidos. Neste último, esperou à porta da embaixada, em Berlim, até receber o visto…28 horas mais tarde! No regresso, conduziu até à famosa Porta de Bradenburgo, em Berlim, onde simbolicamente terminou a longa viagem de “Otto”, que lhe valeu um registo no livro dos recordes. Não pela viagem mais longa, que essa pertence a um casal suíço, que a concretizou em 1984, com um Toyota Land Cruiser, mas sim por ter sido a viagem mais demorada com o mesmo veículo. “Otto” hoje é uma peça de museu, literalmente. Ao entregá-lo em Estugarda ao responsável máximo pela Mercedes-Benz, Gunther Holtorf foi bem recompensado pela sua viagem no “Otto”: Dieter Zetsche recebeu as chaves e entregou um cheque de…450 mil euros, valor que Gunther estima ter gasto nesses 26 anos a percorrer o mundo…